" " NOVA CASTÁLIA: abril 2014

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domingo, 27 de abril de 2014

ASSIM MORRE A INOCÊNCIA





       Casualmente, foi dessa maneira que J. Castor defrontou-se com o quadro no terceiro andar daquela agência de publicidade. Seu escritório era no sétimo, e jamais se deslocava ao terceiro, onde havia apenas o almoxarifado. Dia desses, abrindo-se a porta do elevador, atendeu ao impulso, e acabou descendo no piso errado. Tendo o elevador se fechado com velocidade, hesitou entre aguardá-lo de novo ou utilizar a escada, e antes que viesse a decidir, avistou o quadro. Tratava-se, na verdade, de uma ilustração, uma ilustração de características refinadas, admitiu J. Castor. Provavelmente servira a alguma campanha do passado, mas perdendo sua utilidade, terminara figurando na parede suja daquele corredor. O contraste, decerto o contraste com a parede sórdida justificava suficientemente o seu espanto. A jovem da ilustração, a jovem de cabelos rubros, vestido branco e singelo, carregando flores em um cesto, aquela jovem passeando em cenário campestre, em um cenário longínquo, descosturado da realidade, aquela jovem cativou J. Castor.


       Havia um segredo no terceiro andar, e J. Castor tornou-se cúmplice dele. Sempre que possível, descia de modo discreto e, em silêncio, contemplava a protagonista da ilustração. Suas feições não se encontravam meticulosamente delineadas pelo artista: o nariz delicado e os lábios polposos distinguiam-se, porém, o resto do semblante era apenas a suposição da placidez. Mesmo a suposição – tão-somente ela – foi o bastante: J. Castor esperava com ânsias beber na fonte daquela placidez, ser também ele habitante do cenário campesino, e partilhar a companhia da jovem. Os escritórios claustrofóbicos, as criaturas gélidas e descoradas de sua convivência, a cidade colossal, a cidade compressora de gente, a cidade e todo o restante, enfim, contrapunham-se ao sonho. Sua existência denunciava aridez, e J. Castor só queria mesmo deambular por outra paisagem, umedecendo os pés descalços, sorvendo o oxigênio puro, mirando, extasiado, os traços fisionômicos de sua jovem companheira. Sofria calado e medonhamente ao debater-se no rodamoinho de tal delírio. Talvez não ignorasse totalmente estar distanciado da realidade palpável, mas como aquele fascínio exibisse garras tiranas, J. Castor não foi forte o suficiente para se libertar da situação.


       O delírio baralha a compreensão dos signos externos – qualquer tratado de psicologia confirma isto – e a vertigem de J. Castor transbordou, infectando inteiro o seu cotidiano. Subindo a avenida central durante uma tarde chuvosa, enfim ele acreditou surpreender a jovem no contato fortuito e miraculoso entre ambas as realidades. O talhe humilde da mulher certamente acrescentava consistência humana à beldade retratada na ilustração. J. Castor quase levitou ao testemunhar aquele desejo supostamente realizado. Sim, é ela, estou convicto… Outra pessoa em semelhante situação, caso comparasse as duas com alguma lucidez, demonstraria ceticismo. A camponesa da ilustração exibia o porte elegante e os cabelos fartos que faltavam à outra. O nariz da mulher de talhe humilde imitava a delicadeza – concordo –, no entanto, a pele achava-se recoberta com pequenas manchas. Quanto aos lábios polposos, eram característica exclusiva da jovem campesina. Porém, J. Castor tinha um trunfo, e esse trunfo consistia em haver discernido vestígios de inocência pastoral no semblante daquela mulher. O encontro fortuito sucedeu em outras ocasiões, e J. Castor brevemente cartografava todos os roteiros dela. Chegava logo cedo a um casarão da avenida central e, ao entardecer, deixava o mesmo endereço rumo ao seu lar. Certa vez, J. Castor observou-a conduzindo com meticuloso desvelo um homem idoso pelas alamedas arborizadas do parque e, dessa forma, concluiu tratar-se de uma enfermeira. Cada dia passado mais aumentava a sua afeição, alimentando-se do testemunho visível oferecido por aquele cotidiano tão generoso. Sabia necessário abordá-la em algum momento, porém, percebia-se confuso quando tentava forjar mentalmente a situação que lhe parecesse mais adequada.


       Refém dessa confusão, J. Castor acabou produzindo um desastre quando decidiu agir. Carecendo de uma estratégia antecipada, bateu à porta do casarão talvez acreditando que a ousadia fosse suficiente para conferir o êxito. Se ao menos tivesse ensaiado duas ou três sentenças… J. Castor saiu-se com um balbuciar de frases trêmulas e desconexas enquanto, junto à porta, a mulher testemunhava o seu vexame mal conseguindo esconder o desconforto da situação. Sem dúvida foi desastroso. Saiu dali abalado, devendo a ela justificativas convincentes, e supondo ter estragado tudo. Desde então, seria totalmente impossível cruzarem-se na avenida central como dois desconhecidos, e J. Castor viu-se limitado a espreitá-la, sorrateiro e a distância, oculto entre as árvores ou em diferentes esconderijos. Privar-se daquele contato mais próximo com a inocência pastoril, contato diário e supostamente casual, rápido ia-se tornando algo desumano, e J. Castor afundava em dolorosa tristeza. Consumia o tempo formulando soluções, qualquer coisa que fosse capaz de consertar definitivamente o estrago. Mas na verdade considerava-se já desmoralizado – diante de si mesmo e da outra – de tal modo que todas as soluções refletidas se apresentavam como puras tolice e banalidade. Foi assim se ajustando à condição de renegado, escolhendo abrigos que pudesse encurtar o afastamento. Pouco mais daquele esforço, e a resignação talvez fizesse com que se sentisse até mesmo satisfeito. A rotina do admirador longínquo atingia certa estabilidade, e J. Castor imaginou ter driblado a tristeza.


       Sua satisfação reduzira-se ao mínimo – tinha consciência –, no entanto, só dispunha daquilo realmente. Por esse motivo, semanas depois, agoniou-se ao ser privado também daquele escasso deslumbramento. A mulher de caráter humilde desapareceu – assim repentinamente – como se os tons e as linhas da realidade palpável houvessem esmaecido. Outra pessoa assumiu as obrigações no casarão, alguém tão diferente dela e também da campesina que J. Castor não se permitiu ludibriar outra vez. Tomado pela abstinência, buscou o terceiro andar, e ali descobriu que a contemplação fria da imagem tornara-se insuficiente. Sua natureza exigia, ao menos, estar vigilante atrás de árvores, protegido contra o risco de qualquer encontro desastrado. A enfermeira carecia do porte elegante, entretanto, J. Castor afeiçoara-se ao corpo em movimento. O vestígio campestre nela encontrado – pouco, muito pouco – era o seu simulacro de primavera salvando-o do desespero padecido em ambientes suburbanos. Só existia uma atitude a tomar em tal circunstância, e embora J. Castor não a ignorasse, tremia sempre que se dispunha a calcular suas consequências. Certa vez, ao cair da tarde, ousara seguir aquela mesma mulher até a região distante onde ela habitava. Utilizara todos os cuidados disponíveis, e conseguiu realizar o trajeto dissimulando-se a ponto de não ser descoberto. Havia despendido, então, duas horas de trem até atingir os limites da cidade, mantendo a distância segura, e ali avistara a mulher ingressando por uma estrada de terra. Dessa maneira, J. Castor supunha estar ciente de seu paradeiro.


       Evocando essa recordação, J. Castor decidiu-se novamente pela ousadia. Tomou o trem, e tendo saltado naquela região longínqua, após alguns minutos de caminhada, acercou-se da estrada de terra. A lama decerto respingaria nos sapatos, sujaria a barra de suas calças, mas isso em nada o perturbou. Um casebre construído na base de tijolos, cimento e ripas de madeira parecia aguardá-lo, e ainda titubeante J. Castor bateu à porta. Foi atendido por uma velha de semblante sisudo, trajada em negro do pescoço à borda inferior do vestido. Procuro uma senhorita, acredito que more aqui, uma senhorita enfermeira. Havia algo de astuto e enérgico naquela senhora, e mesmo com os olhos amarelecidos pela velhice, analisou-o com austeridade. Entre, disse. O ambiente era escuro, e além da umidade respirava-se na atmosfera um cheiro rançoso de podridão. Com a mão rija e áspera, a velha segurou o pulso de J. Castor: o contato causou nele imediata repugnância. Ela passou a noite em claro, meu senhor, está cansada. Fez o possível… todo o possível. Conduziu-o a outro cômodo, e solenemente mostrou-lhe o corpo do menino depositado sobre a mesa. Vê? Ele parece tranquilo agora, mas escarrou sangue durante duas noites. Ela fez todo, todo o possível. J. Castor estremeceu. Meio coberto por um véu branco, o garoto parecia um boneco de cera. Obscena e explícita, a morte ali exibida era o contraponto grotesco de suas esperanças. Buscava a vivacidade dos campos, a fonte da vera inocência, os desejos realizados, não obstante, o cadáver sobre a mesa tudo corrompia. J. Castor atentou para tossidos oriundos de outro canto do cômodo. Deus tenha misericórdia! disse a velha. O caçula também se adoentou. Está febril, tem tremores e, às vezes, delira. O outro se achava junto à parede, deitado sobre um colchão miserável, e seu semblante macerado voltava-se na direção do morto.


       J. Castor evitou o desfalecimento diante de um cenário tão deprimente. Sob a atenção hábil e sinistra da senhora, sentiu-se esgotar ao contato com tantas desgraças. Houve o impulso de fugir, contudo, existia igualmente a consciência de ter-se atraído por outra motivação. Talvez resistisse ainda dentro dele vestígios daquele propósito inicial. Ah, o repouso campesino… Belinda! O nome foi proferido pela velha. Um homem veio te ver, Belinda. Surgindo por trás da parede que separava o cômodo de dormir, Belinda adiantou-se vagarosamente. Decerto estivera tentando descansar, reunir de novo as energias físicas perdidas após o fracasso da batalha. O outro garoto continuava vivo, afinal, e exigiria dela novo combate. Manchas escuras rodeavam os olhos de Belinda, rugas acentuavam-se no semblante, e os cabelos que jamais foram rubros e fartos agora se mostravam de constituição ainda mais frágil e carente de viçosidade. Fitou J. Castor desnorteada pelo sono. Belinda é tão só, sussurrou a velha, o senhor pode salvá-la. Belinda gastou alguns instantes até visualizá-lo com clareza, e passado certo estranhamento, assomou-lhe ao rosto toda a estupefação. Havia reconhecido o protagonista de uma circunstância patética. Reagiu com certa indignação no começo, mas em seguida o cansaço venceu, repondo nela a letargia. Mesmo visivelmente humilhada, Belinda submeteu-se a encará-lo de modo suplicante. J. Castor recuou automaticamente: não viera preparado para aquilo. Trata-se de um engano, senhorita, me perdoe, me perdoe. Soltando-se das garras hábeis da velha, evadiu-se às pressas do casebre.


       Pegou o táxi que surgiu na primeira esquina. Dentro do automóvel, aspirou o cheiro consistente do couro macio nos bancos. Sentia-se, finalmente, seguro. Para onde, doutor? J. Castor considerou a pergunta, e respondeu ao motorista: Me leve para longe… para bem longe.           


Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).

sábado, 26 de abril de 2014

SILÊNCIO COMPULSÓRIO






Há noite e em mim existe o silêncio
compulsório, silêncio que constrange

o corpo a um torpor absorvente.
Calo-me, embora a chuva no quintal
martele o seu compasso persistente
em sinfonia dura e natural.

O silêncio dos lábios é contraste,
e eu sei trago comigo a confissão

pejada de sentenças inconclusas
e gritos em estado adormecido
– enfim o sono rompe suas eclusas