SEGUNDA PARTE
1. RUMO AO CORAÇÃO DA VIDA MONÁSTICA
Procurei utilizar a Primeira Parte deste
estudo para apresentar brevemente a situação do ser humano defronte a Deus, a
condição espiritual que necessita assumir ao ingressar em uma comunidade
monástica – ou seja, assumir-se como discípulo – e o objetivo dessa jornada:
amar a Deus acima de todas as coisas e aos outros como a si mesmo. Nisto reside
o essencial da Regra de São Bento. Se o meio conventual circundante mostrar-se
favorável, e o monge entregar-se sinceramente ao caminho, então, neste caso,
terminará alcançando a salvação e também a comunhão integral e mesmo definitiva
com Jesus Cristo. Colocando a circunstância dessa maneira, decerto admiramos como o programa beneditino de santidade é algo suficientemente
simples para ser sintetizado em um Prólogo, e desenvolvido posteriormente nos capítulos restantes. Sim, eis a verdade: a obra de São Bento de
Núrsia surpreende pela clareza e simplicidade. No entanto, do princípio ao
termo existem desafios inúmeros que o monge precisará vencer. Por esse motivo,
intento aprofundar os conceitos antes já expostos, fazendo uso desta Segunda
Parte. Conquanto o modelo de vida monástica beneditina não exija esforços
sobre-humanos, o indivíduo deve conservar-se atento. Há minúcias de grande
consistência, tarefas ou obrigações ativas e contemplativas que merecem todo o
cuidado, e no decorrer da empreitada, isto constituirá a santidade.
Se as meditações ora apresentadas
tornarem-se, de algum modo, exercícios práticos, se houver, de fato, não apenas
o consentimento intelectual dos leitores a respeito da veracidade dos conselhos
que constituem essa análise, se existir, enfim, um tipo de assimilação
habitual, terei atingido o objetivo. Pois aquele que se une a qualquer
comunidade monástica não deve fazê-lo visando unicamente a contemplação passiva
das realidades divinas. Trata-se de padecer o milagre de um novo nascimento,
aceitar ser concebido outra vez seguindo o paradigma de Cristo, o Deus
encarnado. Sem esse dado prático, ou seja, sem o testemunho visível, a religião
é morta, não se expande até abarcar a plenitude do ser humano. Neste ponto, não
obstante, urge distinguir claramente a diferença entre atitudes de fé e
ativismo. Há no contexto teológico contemporâneo uma corrente que almeja
instrumentalizar a essência sobrenatural do homem com a intenção de utilizá-la
como meio de transformar radicalmente as estruturas de nossa sociedade. Dentro
desse contexto teológico, marcadamente latino-americano, tencionando vincular o
evangelho de Cristo ao ideário socialista, tudo consiste em abolir aquilo que é
frequentemente denominado pecado social.
Com isso, desvia-se o indivíduo de sua obrigação: restaurar a natureza corrompida
pelas consequências do pecado.
No começo do Prólogo, São Bento diz:
A ti, pois, se dirige agora a minha
palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunha as
gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo
Senhor, verdadeiro Rei.
Mas o que combatem aqueles que são
chamados? Cristo nos responde: a carne, o mundo e o diabo.
São as três causas do afastamento de
Deus. Há algo de verdadeiramente maligno em propor aos seres humanos o combate
prioritário dos males sociais, em detrimento da batalha contra as fraquezas
humanas que nos afastam do caminho. Na medida em que o indivíduo deposita todas
as suas energias no ativismo ideológico, projetando a realidade do mal nas
estruturas externas, acaba assim abandonando terrivelmente o campo de batalha
indicado por Deus: a alma. Não é por acaso que a principal vertente teológica a
defender a troca do combate – a teologia da libertação – busque na psicanálise
freudiana o argumento necessário para mitigar os conceitos tão tradicionais de
pecado pessoal e culpa. Seus adeptos entendem perfeitamente ser imprescindível
murchar o aspecto individual e exacerbar o coletivo se o que se pretende é
desviar o cristão da luta espiritual e aprisioná-lo na práxis política. Porém, o intento de Deus consiste em colocar-nos para militar sob o Cristo Senhor,
verdadeiro Rei, e, conforme sabemos
bem, o Reino de Jesus não é deste mundo. Usei, de maneira bastante proposital,
o termo maligno ao mencionar a
subversão do significado que originalmente se dá ao combate, pois ao demônio
interessa, sobretudo, agrilhoar as almas no inferno, e o modo mais eficiente de
conseguir isto é perverter a interpretação da Palavra do Senhor. Todo aquele
que se utiliza de uma hermenêutica de caráter ideológico com o intuito de
explicar os textos bíblicos não se põe a serviço de Jesus Cristo. Só aquele que
pratica segundo ordenou o Altíssimo é verdadeiro militante do exército cuja
cabeça é o Filho Unigênito.
Por essa razão é tão essencial operar em
conformidade com os ensinamentos e as exigências de Cristo. Ele é nosso único
Mestre, o caminho que nos conduz à verdade e à vida eterna. Os teólogos da
Patrística e da Escolástica, ao unificarem filosofia grega e revelação cristã, não
pretenderam submeter o evangelho do Reino a uma determinada visão do mundo ou a
uma doutrina social qualquer. Motivada por certas contingências históricas, a
Igreja viu-se então confrontada com questionamentos internos e externos, e
tentando defender e edificar sua doutrina valeu-se do pensamento grego. Ora,
ainda que nem toda a obra deixada por Platão e Aristóteles possa ser conciliada
com a Revelação, aquilo que há de essencialmente ético e metafísico, por
exemplo, devido à semelhança estabelecida entre as partes, auxiliou na
construção de doutrina cristã. Os estudiosos só conseguiram entrelaçar
filosofia e teologia porque não encontraram flagrantes antagonismos. Mas quando
nos debruçamos sobre o fundamento das ideologias, ali não encontramos a mesma
similitude. Falta, em princípio, a certeza da dimensão sobrenatural. Tudo está
restrito às contingências do tempo presente e às suas necessidades materiais,
adquirindo uma conotação política específica, sempre recoberta com verniz demagógico.
Ou seja, não existe verdadeira comunhão entre essências. E mesmo os conceitos
de justiça social e caridade cristã – tão parecidos superficialmente – no fundo
diferem de forma radical na medida em que o primeiro promete os bens desta
realidade temporal e limitada enquanto o segundo assegura os bens relativos à
eternidade.
O monge, se o que pretende realmente é militar
no exército de Cristo, necessita distanciar-se das armadilhas ideológicas que o
aprisionam em um estado espiritual equivocado, precisa manter-se fielmente na
estrada do Salvador sem se permitir transviar. Seu real objetivo deve sempre
ser direcionar-se rumo ao coração da vida monástica, ou seja, a intimidade
amorosa de Jesus Cristo. Eis como é possível traduzir a vocação. São João da
Cruz dizia o seguinte: “Amor com amor se paga.” Precisamos retribuir o amor que
Deus nos devota, e na condição específica daquele que se submete à Regra, a
retribuição ocorre na busca do silêncio e da solidão para melhor escutar o que
o Espírito ensina, na convivência fraterna e paciente com os irmãos, na louvação
permanente, na santificação através do trabalho e, principalmente, no combate
contra os inimigos que nos atacam sem descanso. Somente assim é que nos
tornamos semelhantes ao Cristo. Somos convocados, portanto, a restaurar em nós
o estado de pureza original comprometido pela ação desastrosa do pecado, e apenas
aquele que compreender o espírito da Regra e aplicá-la na prática será
verdadeiramente digno de receber o prêmio.
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