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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

PEDAGOGIA BENEDITINA: PRÁTICA DA CORREÇÃO




                         3. PRÁTICA DA CORREÇÃO              



O monge empenhado na imitação de Cristo, naquilo que há de peculiar em sua condição, perceberá que, a despeito das tribulações naturais do caminho e transcorrido certo período de assimilação da Regra, é factual adentrar o recinto em que se experimenta, solitária e silenciosamente, as benesses da comunhão com Deus. Há desafios e contrariedades e, não obstante, ultrapassados todos os obstáculos, conquista-se essa afinidade com Jesus. Sendo assim, aqueles que perseveram são premiados. Certamente, não se trata de receber notoriedade, honrarias eclesiásticas ou bens materiais – que isto ao religioso nada favorece –; trata-se de obter do Altíssimo a graça de escutar aquilo que, em segredo, Cristo sussurra à alma pacífica do discípulo. Vê-se aqui um estado de intimidade semelhante ao de São João, quando este se inclinou, durante a última ceia, recostando sua cabeça ao peito do Mestre. Os mistérios do coração de Cristo, seus sofrimentos, sua doçura, seu sacrifício e sua glória, tudo sutilmente partilhado. Provavelmente o mundo haverá de ignorar, por completo, os frutos espirituais dessa espécie de matrimônio. Só o que interessa aos indivíduos de existência mundana são as satisfações passageiras, o acúmulo de riquezas, a balbúrdia das diversões, etc. Por isso, a única recompensa que o monge deve pretender ao devotar amor a Deus é receber o amor de Deus. Eis o que basta, o que se mostra suficiente. Porque nada consegue exceder os privilégios de ser convidado à intimidade de Jesus.

A Regra de São Bento é, sobretudo, uma via pedagógica que tenciona oferecer, ao ser humano, acesso ao contato com a essência divina, ali firmemente o conservando. E é imprescindível, assim, submeter-se a esse preparo com o intuito de se acercar de Deus respeitosamente. No livro do Êxodo, lemos: Apascentava Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madiã. Conduziu as ovelhas para além do deserto e chegou ao Horeb, a montanha de Deus. O Anjo de Iahweh lhe apareceu numa chama de fogo, do meio de uma sarça. Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia. Então disse Moisés: “Darei uma volta e verei este fenômeno estranho; verei porque a sarça não se consome.” Viu Iahweh que ele deu uma volta para ver. E Deus o chamou do meio da sarça. Disse: “Moisés, Moisés!” Este respondeu: “Eis-me aqui.” Ele disse: “Não te aproximes daqui, tira as sandálias dos pés porque o lugar em que estás é uma terra santa”. Disse mais: “Eu sou o Deus de teus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Então Moisés cobriu o rosto, porque temia olhar para Deus (Êx 3, 1-6). Em um mosteiro, tanto a dimensão interior quanto a exterior evocam e, de fato, exemplificam a sacralidade dessa terra tocada por Deus. Faz-se necessário cumprir certas exigências ao adentrar o ambiente. Se eventualmente esse cuidado não é assumido, corre-se, então, o risco de ofender a Deus, recebendo a punição merecida. Portanto, há que se empreender um esforço no intento de cumprir as exigências interna e externa, corrigindo as más inclinações sempre que submetidos à rotina pedagógica e sendo fiel e diligente durante as obrigações da prática monástica.

São Bento de Núrsia especifica admoestações semelhantes no Prólogo da Regra: 
 
Se queremos habitar na tenda desse reino, é preciso correr pelo caminho das boas obras, de outra forma nunca se há de chegar lá. Mas, com o profeta, interroguemos o Senhor, dizendo-lhe: ‘Senhor, quem habitará na vossa tenda e descansará na vossa montanha santa?’. Depois dessa pergunta, irmãos, ouçamos o Senhor que responde e nos mostra o caminho dessa mesma tenda, dizendo: ‘É aquele que caminha sem mancha e realiza a justiça; aquele que fala a verdade no seu coração, que não traz o dolo em sua língua, que não faz mal ao próximo e não dá acolhida à injúria contra o seu próximo. É aquele que quando o maligno diabo tenta persuadi-lo de alguma coisa, repelindo-o das vistas do seu coração, a ele e a suas sugestões, redu-lo a nada, agarra os seus pensamentos ainda ao nascer e quebra-os de encontro ao Cristo. São aqueles que, temendo o Senhor, não se tornam orgulhosos por causa de sua boa observância, mas, julgando que mesmo as coisas boas não podem ser obra sua, mas foram feitas pelo Senhor, glorificam Aquele que neles opera, dizendo com o profeta: ‘Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome dai glória”.

Seria indício de intolerância se Deus não compreendesse as fraquezas humanas, e punisse com excessivo rigor os indivíduos que, mesmo se conduzindo segundo os ditames da boa vontade, cometessem pecados. Deus é misericordioso, e não se esquece de quem combate bravamente, ainda que, às vezes, encontre derrotas. Mas que essa convicção da misericórdia não se transforme na vã esperança da condescendência! É imprescindível que o monge dedique atenção particular ao conhecimento de si mesmo a fim de identificar as inconsistências, os impulsos desordenados e, até mesmo, aquilo que existe de sombrio em seu caráter. Há que se obter, assim, uma visão abrangente a respeito da própria alma, não tencionando julgá-la – certamente porque isto é prerrogativa divina –, mas antes almejando corrigi-la, educá-la segundo os preceitos do Mestre. Para alcançar esse objetivo, urge exercitar-se continuamente na prática do exame de consciência e também da confissão. Solicitar ao Senhor as luzes suficientes para esquadrinhar suas próprias misérias, e demonstrar a coragem de se submeter àquele processo de conversão que acontece através dos sacramentos. Sem a percepção clara concernente ao seu próprio estado espiritual, o monge mantém-se distante de uma relação mais íntima. Repete externamente todos os gestos formais de sua condição, mas não penetra o essencial de tudo aquilo que realiza. Portanto, é necessário desvelar a natureza humana com o intuito de restaurar o que exige ser restaurado, buscar a semelhança de Cristo, estabelecendo a comunhão.

Somente o amante da verdade possui em si mesmo a coragem de levantar os véus que recobrem as misérias pessoais. Da ignorância ao conhecimento efetua-se uma espécie de passagem na qual devem ser ultrapassados diversos obstáculos, e um dos mais desafiadores consiste em descartar esta ou aquela concepção a respeito de si mesmo: concepção que se demonstra falsificada quando confrontada com a realidade. Seguimos em direção a Deus e, na medida em que Dele nos acercamos, tudo aquilo que em nós existe – tudo o que somos – é manifestado sob a luz divina. Ora, nossos conceitos e nossas atitudes estão alicerçados naquilo que nós somos ou julgamos ser. Nisto depositamos bastante confiança, no entanto, diante de uma visão mais precisa, é natural constatarmos discrepâncias entre a verdade daquilo que somos e a suposição do que acreditamos ser. De imediato, essa constatação produz choque, estremecimento, desilusão. Afinal, compreendo ser bem menos do que imaginava. Sobram-me defeitos, faltam-me virtudes, e toda a ilusão construída desaba frente a essa revelação. Por isso é que afirmo a necessidade do amor devotado à verdade. Apenas a vivência do sentimento amoroso capacita-nos a suportar o sofrimento, sacrificar aquilo que é imprescindível ser sacrificado. 

A doutrina tradicional da Igreja serve-nos como paradigma confiável, e se nos permitimos modelar segundo seus preceitos, descobrimos que beber nesse manancial é decerto algo bastante proveitoso. Sua base fundamental consiste na revelação que vem, de início, através do povo hebreu no Antigo Testamento até atingir o advento da Nova Aliança firmada em Jesus Cristo, e sobre esse fundamento acrescentam-se as reflexões teológicas concebidas na história do catolicismo. Tudo criteriosamente compendiado. Mas observá-la tão-somente se utilizando da perspectiva de um rigor conceitual, ou seja, como um tratado de regras a serem seguidas, produzirá certamente algum desconforto. Quem estará realmente capacitado para assimilar tal quantidade de prescrições dentro do contexto da prática cotidiana? Por exemplo, nossa doutrina moral parecerá demasiado exigente, e sua vivência absoluta um ideal inalcançável devido às fraquezas humanas. Sem dúvida, identifico alguma coisa de real nessa afirmação, não obstante, se desejamos mergulhar profundamente na compreensão de tal realidade, devemos entender a justiça e a misericórdia de Deus. Muitos atualmente desprezam o seguimento de Cristo na Igreja temendo o rigor dessa doutrina que, de fato, é manifestação da justiça divina. Deus oferta ensinamentos, cobra-nos obediência e castiga quando necessário. Contudo, Ele também se compadece do homem de coração contrito, e dedica misericórdia ao pecador que se arrepende. Logo, que ninguém suponha ser a perfeição uma exigência inicial àquele que busca a proteção da santa doutrina. Exige-se – isto sim! – a humildade de reconhecer os próprios equívocos e aceitar a caridade de um Deus inclinado ao perdão.  

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