2. SACRIFÍCIO DO TEMPO
O sacrifício em nome de Deus não é uma perda definitiva. Não significa atirar, seja o que for, ao esquecimento, à escuridão, na esperança de receber Dele outra coisa qualquer. De fato, esse sacrifício não consiste em uma troca: antes e acima de tudo, consiste em uma transformação. A celebração da eucaristia comprova-o totalmente. As espécies do pão e do vinho não são trocadas; na realidade, são transubstanciadas em corpo e sangue de Jesus Cristo. Sucede ali um milagre, e não uma prestidigitação. O Filho de Deus não materializa barris de vinho nas bodas de Caná: seu primeiro milagre público foi transformar a substância da água em outra substância de composição mais nobre e saborosa. Sendo assim, acontece ali uma elevação de categoria, uma sublimação. Eis, portanto, a verdadeira dinâmica do sacrifício, ou seja, permitir que o Senhor opere os seus milagres, aceitando que Ele tome nas mãos tudo aquilo que seja inferior e imperfeito, e miraculosamente isto conduza a uma condição muito superior. Ora, os bens materiais de que dispomos não têm, diante de Deus, o valor sacrificial de um coração contrito. O ser humano que tencione entregar algo em sacrifício nada encontrará que seja mais adequado que entregar a si mesmo. Santificar a humanidade é o verdadeiro milagre que Jesus Cristo deseja realizar. Do estado pecaminoso ao estado de santidade efetua-se uma transformação prefigurada na passagem das bodas de Caná. Quando Deus assim trabalha, o indivíduo não deixa de ser completamente aquilo que é; conserva-se a unidade, mas em sua constituição acontece um efeito reparador, e a subida a um tipo de condição espiritual superior. Na epístola aos Romanos (12, 1-2), o Apóstolo escreve:
Exorto-vos, portanto, irmãos, pela
misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como sacrifício vivo, santo
e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual. E não vos conformeis com
este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes
discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito.
Ser convocado a seguir Jesus no caminho da
vida monástica é oferecer-se a si mesmo em sacrifício. Tendo assumido a
condição, o monge necessita tomar plena consciência desse fato. Como afirmei
acima, entregar-se nas mãos do Senhor representa ser transformado por sua ação
benfazeja. Trata-se de uma restauração do ser humano – processo, às vezes,
doloroso e paulatino – que não anula a individualidade da pessoa, antes trata
de elevá-la em perfeição. Quando alguém se acerca da cruz de Cristo no seio de
uma comunidade monástica, e aceita combater espiritualmente com Ele, dispõe-se
a realizar uma espécie de sacrifício integral. Porque é bem possível
entregar-se a Deus na vocação laical, e conciliar isso com deveres relativos à
família e ao trabalho secular; mas o monge encontra no Salvador seu centro
absoluto, toda a sua atividade a Ele remete, os estudos conduzem ao Cristo, e
se a experiência da Regra atingir o resultado aguardado, o monge se tornará
outro Cristo em oração constante. Portanto, não devemos entender a rotina
monacal como imersão limitada na fonte do cristianismo. Seu conceito significa
basicamente uma imersão integral, doação completa. Isto pode ser constatado
muito claramente nos votos que, sendo professados, são válidos ab aeterno. Logo, conclui-se que o
religioso sacrifica sua existência como um todo. No entanto, colocado dessa
maneira, o conceito talvez ainda pareça demasiado vago. Pois não é capaz de
entregar sua vida ao Senhor quem não entrega decididamente a cada instante.
Isto é algo que o indivíduo empenha a Deus
quando ingressa no mosteiro: o tempo. Não somente o tempo longo da existência,
mas também aquele que compõe a rotina cotidiana. Comprometer-se sinceramente
com o serviço divino até a morte é um desafio, não obstante, reafirmar nas
atividades do dia-a-dia esse compromisso é um desafio ainda maior. E a
santidade, sem dúvida, está na fidelidade devotada às pequenas coisas, na
decisão de ser fiel a Deus em cada pequeno detalhe. Pois existe o perigo de
assumirmos compromissos externos de vida que não se efetuam continuamente na
intimidade do coração. De fato, eis um risco temível. Por isso, do religioso se
solicita um estado atento de consciência, uma disposição para se conservar
desperto. Preparado, enfim, para sacrificar o seu momento presente. Somos demasiado
apegados a esse presente, e custa-nos sacrificá-lo. Contudo, a essência da
vocação monástica reside precisamente na vontade de ter Cristo como senhor
absoluto, e tê-lo assim inclusive naquelas minúcias supostamente
insignificantes. Quando subsiste no indivíduo um esforço no sentido de
assimilar em si mesmo a estrutura habitual sugerida pela Regra, sucede como
consequência o êxito espiritual. O tempo que constitui o dia do monge oferece a
ocasião propícia.
São Bento recorda:
Levantemo-nos então finalmente do
sono, pois a Escritura nos desperta dizendo: ‘Já é hora de nos levantarmos do
sono’. E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o
que nos adverte a voz divina que clama todos os dias: ‘Hoje, se ouvirdes a sua
voz, não permitais que se endureçam vossos corações’, e de novo, ‘Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às igrejas’. E que diz? – ‘Vinde,
meus filhos, ouvi-me, eu vos ensinarei o temor do Senhor. Correi enquanto
tiverdes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos envolvam’.
Um dos momentos de maior intimidade com
o Senhor acontece durante as vigílias. No escuro da madrugada, enquanto boa
parte da humanidade ainda permanece enredada em sono, os monges já estão
despertos com o intento de submeter-se à orientação de Jesus: Orai e vigiai. Pouco antes de ser
entregue, estando no horto de Getsêmani, Cristo solicitou a três apóstolos que
o acompanhassem em oração e vigília. Não convocou a todos, mas tão-somente
Pedro, Tiago e João. Existe nisto uma espécie de prefiguração do chamado à
existência monástica. Pois se com todos aqueles Jesus Cristo decidira celebrar
a partilha do pão e do vinho durante a ceia pascal, apenas aos três específicos
Ele atribuíra uma exigência maior. Sem dúvida, devemos reconhecer nessa
convocação a chance de estreitar amizade com o Salvador, estabelecendo com Ele
uma relação mais íntima; concomitantemente, isto significa estar dispostos a um
sacrifício contundente. Trata-se de segui-lo no instante de suas angústias,
macerando, como Ele, a vontade própria. Há o fastio motivado pela rotina, o
estado de entorpecimento do corpo, as distrações que confundem a inteligência,
entretanto, também deve existir a intenção firme de estar continuamente na
companhia de Jesus Cristo. No evangelho de Lucas temos: Por que estais dormindo?
Levantai-vos e orai, para que não entreis em tentação,
e no evangelho de Mateus: …
pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca.
O cotidiano do monge inicia, dessa forma, na partilha da angústia do cordeiro
imolado e no combate às fraquezas carnais que conduzem à tentação.
É natural que qualquer pessoa anseie
frutificar aquelas sementes recebidas em forma de talentos. Muito frequentemente
o monge não dispõe só de uma vocação – a monástica, talvez acompanhada do
chamado sacerdotal –; além de sua vocação religiosa fundamental, acontece ao
indivíduo ter também talentos intelectuais, artísticos, pedagógicos, etc.
Dentro das possibilidades, compete ao abade reconhecer o caráter divino dessas
qualidades e fomentá-las, não tencionando que os frutos exitosos caibam ao
monge, mas sim glorifiquem a Deus. Porém, uma coisa deve estar submetida à
outra, e o indivíduo isto não pode ignorar. Seus talentos todos necessitam
submeter-se ao voto de obediência, assim como os votos estão submetidos ao amor
de Jesus Cristo. Há uma predisposição básica exigida do candidato, e esta
predisposição consiste em sacrificar a própria vontade, de modo semelhante
àquilo que o Filho de Deus vivenciou no horto de Getsêmani. Pois todo mosteiro
tem suas atividades, e ao monge é solicitado que coloque em segundo plano os
gostos pessoais. Quando Cristo estabelece como sua exigência aos seguidores
negarem-se a si mesmos e tomarem cada qual a sua cruz, remete-se ao sacrifício
da vontade individual. A autonomia do arbítrio humano, sempre que se desvia dos
desígnios de Deus, efetua uma divisão. Pois no princípio havia unidade entre o
que está em cima e aquilo que está embaixo, entre os céus e a terra, entre o
Criador e a criatura, ao menos até que a Serpente – o espírito divisor –
seduzisse o ser humano, nele colocando a dúvida e a rebeldia. O non serviam de Lúcifer manchou a
natureza humana, criou a dualidade onde antes vigorava a unidade. No Getsêmani,
Cristo reestabeleceu a comunhão original entre a vontade superior e a inferior:
Meu Pai, se é possível
que passe de mim este cálice: contudo, não seja como eu quero, mas como tu
queres (Mt 26, 39). Também Maria Santíssima
submeteu-se completamente aos planos de Deus Pai, no instante mesmo da
anunciação: Eu
sou a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1, 38). É
precisamente esse itinerário de entrega que o monge concorda em percorrer. Uma
ruptura com o espírito de divisão, e o consequente chamado à obediência
integral que sucede a todo o momento.
O esforço no sentido de acercar-se do
Cristo, de confiar-se a Ele, sorvendo um trago daquele cálice amargo, assumindo
os sofrimentos parcialmente, esta é a missão peculiar daqueles seguidores que
Lhe dedicam um amor sem medida – conforme ensina São Bernardo de Claraval.
Sendo assim, o religioso empenhado nessa proximidade constrói uma rotina
amorosa. Porque apenas esse amor justifica o sacrifício de si mesmo. Só a
caridade aceita entregar o pouco na esperança de receber o muito ou o cêntuplo.
Se acaso há o cansaço do corpo, se o monge padece a dor de abdicar da vontade
pessoal, se fielmente dispõe os talentos ao Senhor ou admite diminui-los por
conveniência daquilo que é necessário à comunidade, em tudo decerto realiza uma
oblação agradável a Deus. E desse modo ele acaba recompensado. Do nascer do sol
até o seu ocaso, um combate permanente contra as inclinações naturais, contra
aquele desejo de submeter-se à fadiga, ao desconsolo, e adormecer
espiritualmente. Contudo, urge que seja assim! Precisamos manter a consciência
iluminada para que, não caindo em tentação, conservemos nossa comunhão com
Jesus. Tendo confiado, então, ao Senhor as horas preciosas do dia, e
completando-se a jornada cotidiana, o monge descobre um repouso merecido, e,
necessitando estar sob proteção, confia-se a Seus cuidados. Entende que o
demônio aproveita-se da escuridão noturna como o ladrão, mas também sabe que
Deus é fiel, e rechaça poderosamente os ataques do Maligno contra o servo que
cumpriu suas obrigações.
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