E
a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam – Evangelho de São
João.
É preciso mergulhar profundamente na
escuridão para assim compreender melhor o significado místico das velas. A
sombra e a luminosidade rejeitam-se mutuamente, embora se complementem, ao
mesmo tempo, considerando que as luzes natural e sobrenatural combatem – e sobrepõem
– tanto as trevas dos ambientes quanto as trevas da ignorância e do pecado. Se
o combate é necessário, sem dúvida, a existência dos opostos também se mostra
necessária. Recordo-me haver observado a figura que representa a carta O
Eremita, em dada circunstância, e tendo-o feito cuidadosamente, notei que ao
carregar o candeeiro na mão, o personagem ali representado conjugava, num só
tempo, o lume da fé ou do conhecimento e a escuridão do caminho percorrido. Ele
precisa da claridade porque lhe é exigido atravessar a escuridão e, sendo
assim, um elemento depende do outro. Há nisso a síntese da condição dos seres
humanos que, atravessando o vale obscuro desta realidade, utilizam a luz da fé
como instrumento para dissipar as sombras, e que essa síntese represente a
essência do cristianismo fica também suficientemente comprovado pelas práticas
piedosas das tradicionais procissões com velas.
Provavelmente muitos atribuirão a essa
forma de piedade características não exatamente louváveis. Pensarão que se
trata de um vestígio persistente de certo passado no qual, se julga, a Igreja
esteve imersa na ignorância. Algo que se deve tolerar, sem incentivos, como
hábitos de pessoas simples, desprovidas de instrução humanística e teológica.
Não obstante, esse menosprezo devotado ao uso das velas parece-me presunçoso.
Pois há na simbologia dos lumes bentos verdadeiramente algumas virtudes que se
revelam bem úteis para a meditação.
É imprescindível saber distinguir entre
o escuro que nos confunde, induzindo-nos aos enganos e ao pecado, e aquele
outro que nos põe no centro de uma relação mais íntima e absoluta com o Senhor.
A luz bruxuleante das velas significa, no caso primeiro, o esforço heroico de
resistir às trevas circundantes. De fato, a escuridão que nos tenciona envolver
cabalmente parece, inúmeras vezes, mais ampla e poderosa do que o lume da fé, e
é possível que tenhamos receio de que, em algum momento, ela se sobreponha,
apagando o brilho de nossa crença. Mas embora a fé vacile ocasionalmente em
meio a uma realidade sombria, conquanto não crie mais do que um círculo tímido
de luminosidade, é assim realmente, na pequenez da sua condição, que conseguirá
vencer o contraste exterior. Porém, se na questão primária o escuro perturba e
constrange, em outro nível mais profundo de relação – pouco antes mencionado –
ele se transforma em um abrigo no qual o fiel se recolhe tencionando
desvencilhar-se de todas as distrações mundanas. A noite escura de São João da
Cruz caracteriza isso perfeitamente. Busca-se recobrir os sentidos com o véu da
abstinência, não para que, com esse expediente, a escuridão confunda e desvie o
indivíduo, mas para que o brilho duvidoso das coisas relativas ao mundo não se
ocupe de ofuscar a chama divina que alimenta a alma daquele que acredita.
O calor emanado pela chama da candeia
conserva também um significado espiritual. As angústias, os maus hábitos, os
pecados, as mágoas, etc., criam dentro de nós uma espécie de crosta duríssima
que pode somente ser dissolvida pelo fogo purificador de Deus. O ato de acender
uma vela demonstra, em sua piedade, muitas características relativas à
experiência da purgação. Na medida em que a chama vai consumindo toda a cera, o
corpo da vela dissolve-se, sutilizando-se em fumaça ligeira. De forma
semelhante, quando nós somos abrasados pelo fogo do Espírito Santo, tudo aquilo
que se enrijeceu no coração paulatinamente se dilui, e tornamo-nos mais
próximos da realidade espiritual do Senhor. Sendo assim, quando Jesus Cristo
afirma a seus discípulos vós sois a luz
do mundo, isto representa um convite para iluminarmos as trevas desta
realidade material com nossa presença, entretanto, essa condição que tanto se
assemelha ao simples gesto de acender uma vela não sucederá a menos que,
livremente, sob nós permitamos a ação do Espírito abrasador de Deus. É
imprescindível purificar-se para ser luz, e é preciso ser luz para dissipar as
sombras da maldade.
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Maravilhoso, GABRIEL.
ResponderExcluirPermita-me ao final dessa leitura, compartilhar esse poema falado por mim, e tirado da lavra de São João da Cruz, protetor dos poetas e místicos.
http://betoqueiroz.com/2015/07/05/a-noite-escura-da-alma-de-adalberto-queiroz-ouca-de-graca-na-soundcloud/
Abraço fraterno,
Beto.
Magnífica exposição. Nunca havia pensado que a luz bruxuleante de uma simples vela poderia ter tal significado em nosso ser...sempre busco tentar entender as coisas na sua profundidade e essa explicação foi magnifica...Permita me compartilhar para que outras pessoas saibam também....ameií...
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