Roço o
semblante na camada de umidade que recobre a superfície da janela. O frio
áspero embaçando o vidro enregela-me. O provável é deduzir que as temperaturas
hostis tenham origem no exterior, sejam a consequência das frentes costumeiras,
o habitual desta estação. Eis a conclusão lógica. Mas também julgo possível – e por que não? – trazer comigo esse inverno,
dispersando-o por todas as coisas, manchando com seu tom acinzentado a realidade
inteira. Estou agora aprisionado – há tempos é a única certeza. Cela de uma
Sibéria dostoievskiana, carecendo somente das paisagens brancas e inóspitas.
Olho esta janela, as paredes do apartamento, os livros encarando-me
zombeteiros, o portãozinho do jardim, e desconfio. Talvez o meu cárcere não
tenha, de fato, consistência material. Talvez sejam devaneios e sentimentos me
enclausurando. E por isso – precisamente por isso – a nitidez das formas e do
colorido no mundo vai-se tornando mais e mais indistinguível, vai-se
transformando na massa caótica e descolorida. Espreito a rua à frente do
edifício e a ausência de movimentos constrange-me. Tudo me parece apático
agora, como se a existência houvesse mergulhado numa espécie de lamaçal.
Silêncio no corredor, e há tempos! O entregador de jornais, o pandemônio das
crianças do primeiro andar, o resmungar enfadonho do senhorio, tudo calado. O
senhorio costumava subir e entregar-me a correspondência pessoalmente. Sequer
isso agora.
Sibilantes, revolvendo a sujeira na sarjeta, os ventos oceânicos chicoteiam
e rodopiam folhas numa dança improvisada. Enroscam-se depois em árvores
imensas, balançando o esqueleto desnudo, despejando o líquido armazenado. Sobre
o calçamento, arrepiam-se poças d'água. O céu com nuvens chumbadas tem a mesma
aparência das semanas anteriores.
Mas os tempos de criança... Os tempos de criança eram
diferentes, sem dúvida. Ao menos naquela manhã dominical: fantasias coloridas e
brilhantes ao som dos tambores. Coisa antiga! Circo desfilando na rua da
gente, a mãe surpreendeu-se. O barulho do espetáculo inesperado arrancou-me
da cama, atraindo-me ao parapeito da janela. Corpo espichado, o menino ia ao
limite, só conseguindo ver arcos vermelhos e amarelos riscando o ar. Vamos à
varanda, filho, de lá se assiste melhor, soerguendo-me, o pai equilibrou-me
nos ombros. Os palhaços eram verdadeiras aquarelas, e montada sobre o elefante,
a trapezista lançava folhetos à plateia. Vivo, o mundo palpitava com empolgação
naquele instante. Calei os risos e os gritos minutos depois e, pousando a mão
nos ombros paternos, segurei-os com firmeza ao ver como os raios flamejantes
dos pirotecnistas rasgavam o espaço.
Hoje... Hoje só apatia.
O maço de papéis em branco sobre a escrivaninha é o mais
terrível silêncio. Se o transcorrer do tempo nos limites desse apartamento
consiste apenas em esboçar círculos no assoalho, aceito-o, evitando admitir a
prova definitiva do fracasso. À frente da estante, paro e observo os livros lá
dispostos. Sei que o calhamaço também me observa com semelhante insistência –
censura estagnada! – eternamente no canto do cômodo. Que sentido, sem o
escritor? Se ele voltasse… Oito meses no exílio, alheio à literatura. Quase
sempre os escritores terminam exilados – gente pouco compreendida. Gente
indesejada, isto é que sim! O russo Dostoievski padecendo no cárcere da
Sibéria, o húngaro Sándor Márai imergindo no anonimato de San Diego, e em
Paris, Julio Cortázar fugindo da ditadura argentina. O degredo em Paris não
deve ser assim tão tenebroso. Outro escritor, aquele denunciado pelo calhamaço,
suponho ter-se exilado de si mesmo. Toco a lombada dos livros, simulando
qualquer interesse, e disfarçando-me. A correspondência da última editora fora
entregue pelo senhorio: Sua obra não se enquadra em nossa linha editorial…
O texto reproduzia a justificativa tão conhecida, sempre encontrada nas
mensagens anteriores. Rejeitado, o escritor abandonou-me. Que sou? Sua sombra
descosturada.
Rápido, escolho o livro sem conferir o título, e depois
me sento à poltrona. Sigo as letras miudinhas de modo automático, sequer me
atentando ao significado. O espectro do fracasso teima, perscrutando-me. Se eu
lhe aspergisse água benta, se usasse os ritos de exorcismo... Mas não sou
padre. Concentro-me. Eis a história de um lobo, ou melhor, de um homem. Ambos
provavelmente. Já recordo o tema, obra de suma importância sobre o homem-lobo
que não consegue estar contente consigo e com sua própria vida. Saíra
daquele romance, anos antes, completamente chocado. Olhos vivificados, tudo
vibrava! O mundo se transformara ou seria eu a metamorfose? Quisera despertar
as mesmas sensações agora. Contudo, aquelas palavras desfiam-se friamente,
sentenças tumulares, bem diferentes da primeira experiência: ebulição
vulcânica. O mamífero, o socialmente deslocado, metade bicho e metade humano,
ressoa seu uivo nos limites exasperantes do cárcere.
O torpor. Ouço, à distância, o barulho seco do livro
tombando ao assoalho, depois de escorregar-me das mãos. Sono abismal, sono dos
séculos acumulado, sono entontecendo a consciência. Sequer distingo o
mobiliário, já encoberto sob a escuridão crepuscular. Confundo-me, não sabendo
se velo ou durmo, e culpo o cansaço. Se não me exercito no interior do
apartamento, se há tempos raramente saio à cidade, se conheço somente essa
hibernação sem data terminal, como explicar o cansaço? Oh, sei perfeitamente, a
voz interior diz-me, repetida: o necessário é romper o casulo, tornar à vida
cotidiana, aos lugares de sempre. Às vezes, ela quase chega a inspirar-me a
iniciativa do movimento, libertando-me da coleira. Quem sabe agora mesmo...
Mas, então, o torpor recrudesce e caio no sono.
Só desperto tendo a noite estabelecido fronteiras. Talvez
seja o breu dos cômodos ou esse estado de semiconsciência, o fato é que não me
reconheço ali, sentado à poltrona. Móveis ou espectros observam-me, inertes e
silenciosos, sob o tecido noturno. Sem aviso, constatação repentina e até mesmo
natural, ocorre-me sentir fome. Erguer-me resoluto, vestir roupas decentes,
sair em busca de comida! Sim, convém. O dia evaporou-se à semelhança dos
anteriores, e eu naquele apartamento, sem alimentos na dispensa. Sou agora
compelido, não me sobra escolha: eis o impulso! Por ora quase me constrange. Os
minutos escorrem, e respiro inerme como bicho exausto.
Sobe a escadaria do edifício fazendo ranger a madeira.
Conheço perfeitamente o hábito dos moradores, o modo como sobem e descem,
arrastados ou afoitos. O que agora ascende, no entanto, não consigo reconhecer.
Um novo inquilino, provavelmente. Atento-me ao ritmo da passada. Sem pressa –
mas não tão vagaroso assim – caminha com segurança. O som interrompe-se no
corredor à frente do apartamento, e suspendo a respiração, durante todo o
tempo, receoso pelo desfecho. São batidas firmes. Especificamente três, o tempo
de meio segundo separando-as, e depois o silêncio da espera. Sinto-me
desnorteado com a situação. As visitas foram canceladas, abolidas
completamente, e eu nem sequer imagino quem, no corredor, empertiga-se diante
da porta. Metido naquela poltrona, evito qualquer barulho que me denuncie ao
visitante. Se for conhecido do escritor, membro do círculo social de períodos
passados, confesso não me interessar. Conto, ansioso, a passagem dos minutos.
Com semelhante tranquilidade, a visita noturna afasta-se, descendo a escadaria.
Chego a ouvi-la distanciando-se, o barulho dos sapatos no calçamento. Só me
levanto vinte minutos mais tarde, livre de qualquer receio. Trajo-me distraído,
sem dar muita importância ao desleixo das vestes, à falta de elegância.
Preocupa-me apenas agasalhar bem o corpo, proteger-me do inverno.
São raros os transeuntes e pouco lhes enxergo as feições,
sempre escondidos sob o capuz. Mas se acaso eu os reconhecesse, talvez por
tê-los visto em livrarias ou restaurantes – sim, é óbvio, isso antes da
clausura – sei que evitaria o contato. Cruzo, acelerado, recolhendo-me com o
semblante baixo, a marcha em precipitação. Tranquilizo-me somente quando, no
momento seguinte, o ruído da passada evola distante. Sob as marquises, aninhada
junto a fachadas, há outro tipo de gente. Sempre tiritante, cobre-se com mantas
andrajosas, o corpo escondido como bicho na toca. São criaturas de outra
realidade. Olho-as e, diferente do habitual, não me incomodam, não me obrigam à
fuga desesperada. Se se erguessem e me encarassem com a verdade, certo que não
me perturbavam. Ora, talvez só esteja
dizendo isso por saber que não se levantarão. Mas se o fizessem, creio que
me afeiçoava a seu estado miserável.
Os que me
causam repugnância são outros, e posso reconhecê-los devido às bocarras
escancaradas. Vou pelas calçadas e, no caminho, vejo-os acotovelando-se nos
bares. Comprimidos na multidão de troncos, braços e pernas, o rosto afogueado
por conta do álcool e da euforia, tudo insuportavelmente misturado no mesmo
ambiente fumacento. Fujo. O chilrear das vozes e o retumbar da música, mesmo
assim, alcançam-me, colando-se ao corpo,
atravessando os poros, infectando-me intimamente. Nojo. E depois o impulso
quase instintivo da fuga, o desejo de arremeter-me, encontrando refúgio em
algum beco malcheiroso. Ergo o zíper do blusão, em seguida mãos nos bolsos, o
dorso arqueado, blindando-me contra o vento e a sensação de repugnância.
Os passos
vacilam, a cabeça começa a latejar: sintomas do organismo enfraquecido. Se o
corpo padece é devido à clausura. E conquanto a melancolia obscureça os
sabores, ainda que comer tenha-se tornado ato mecânico desprovido de qualquer
satisfação, compreendo que o jejum corrói-me como traça silenciosa:
alimentar-me é questão de sobrevivência. Do apartamento ao restaurante,
quarenta minutos – a distância vencida com certo
sacrifício. Carne com batatas no cardápio, preço aceitável, e o mais importante:
risco mínimo de ser reconhecido. Por lá, somente trabalhadores da região, a
mesma gente carrancuda de sempre, comendo de modo vagaroso, os olhos postos no
televisor.
– Sem
carne com batatas? Que droga é essa? – exaspero-me.
– Pois então, o senhor veja, o pobre do cozinheiro
adoeceu. Misericórdia, como sofre aquele sujeito! Úlceras, dá para acreditar? O
coitadinho vive internado, semana sim, semana não – lamenta o garçom, sinceramente
compungido, e supondo-me interessado pelo estado clínico do cozinheiro. – Mas é
claro que, o senhor querendo, sempre se consegue requentar a sopa do almoço.
– No almoço, então, houve sopa.
– Sopa de espinafre. E também servimos feijoada,
espaguete e bife à parmegiana. Foi só depois do almoço que o cozinheiro
reclamou das dores – explica.
– Sei.
– A sopa é uma delícia, pode crer.
– Você provou? – indago, com desconfiança.
– Não, mas a sopa do cozinheiro tem boa saída.
– Que seja.
O garçom
afasta-se com a indolência que lhe parece peculiar. Suspiro, desalentado.
Depois concluo que contrariedades desse tipo pouco me favorecem, afinal de
contas, o estado abúlico no qual chafurdo torna absolutamente indiscernível o
sabor da carne ou o do espinafre.
O mau gosto da decoração é tão desagradável que não consigo acostumar-me.
Como combinar o amarelo desbotado das mesas com os azulejos de tom carregado?
Se ocorresse ao restaurante ser demolido, azulejos com gravuras assim
antiquadas calhariam bem a algum museu. Mesmo essa dissonância de colorações
não me desgosta tanto quanto as cortinas de tirinhas plásticas. Separa o salão
da cozinha, e sou sempre obrigado a vê-la oscilando à passagem dos
funcionários. Oh, e não me esqueço dos ícones religiosos mal traçados,
ofensivos e degradantes, verdadeira afronta à estética da arte sacra – uma
agressão às vistas! Mas a verdade é que, a despeito dessas contrariedades, nada
me impede de atravessar dois bairros, ainda que trêmulo. Cafés mais agradáveis
talvez me recebessem com decoração modernosa, com jornais e revistas
estrangeiras à disposição, e com a mentira de um público culto e sofisticado. E
não é esse, então, o motivo da fuga? O estabelecimento de estilo desconjuntado
dá-me a chance de estar misturado à multidão de anônimos e proscritos.
Gente semelhante à mulher da bolsa de couro. Bebe seu copo de cerveja
solitário, hábito noturno após o trabalho, sorriso pintado de roxo, cabelos
grisalhos sobrepondo-se à cor da tintura. O gole final sempre guardado. Os
tempos de espera verdadeira, de reais expectativas esgotaram-se, e sabe não ser
possível ressuscitá-los. Hoje a hora passada no restaurante é somente a mesma
hora passada no restaurante. Se houve anseios de vida veloz, esperança de
reviravoltas repentinas, tudo se encontra sepultado. Os exércitos não mais
invadirão a cidade, o cavaleiro impetuoso não irromperá à porta com olhos
faiscantes. Resta-lhe só essa tensão do copo meio vazio. Sabe, no entanto, ser
absolutamente necessário conservá-lo assim. Já não se dedica aos planos e,
entretanto, quer conservar alguma coisa.
O casal sentado próximo à porta tem os copos cheios até a borda, mas a
bebida já se encontra provavelmente morna. Semblante de expressão concentrada,
o marido dedica-se a anotar numa caderneta, contabilizando talvez. Franze a
testa e, às vezes, irritadiço, rasga páginas inteiras, recomeçando os cálculos
em seguida. Sempre que o fato se repete, a mulher tem por hábito fixá-lo com
olhos apreensivos, não porque lhe preocupe o resultado das somas e das divisões
– os resultados são mensalmente os mesmos –, e sim
por almejar outra espécie de linguagem menos numérica. Seu suspiro meio
desistente é quase imperceptível. E se ela o interrompesse, e se gritasse, e se
o mundo inteiro fosse sacudido? No entanto, automóveis riscam o asfalto à
frente do restaurante, e os olhos daquela mulher optam por segui-los. Vão-se
perdendo agora, longínquos, entre clarões amarelos e vermelhos.
De retorno, o garçom serve-me a refeição e bom apetite. Sopa fumacenta aumentando a fome. Chego a
supor, por apenas um instante, ser possível recobrar a satisfação das coisas
pequenas. Provo e novamente só experimento o gosto asqueroso e envelhecido.
Desde que ele, o escritor, safou-se desenganado, é só isso o que experimento.
– Sobremesa? – quer saber o garçom, enquanto os pratos do
jantar são retirados.
– Não, obrigado.
– Trago já o cafezinho.
– Sem café por hoje. Só a conta.
– Mas o cafezinho foi pago por aquele senhor.
– Do que você está falando?
– Falo daquele senhor… O de terno elegante. Pensei que os
dois se conhecessem – o garçom parece confuso, observando com insistência certo
biombo disposto nos fundos do restaurante. – Foi ele que me chamou. Ele me
disse que ia te pagar o café.
É a primeira
vez que vejo aquele biombo no restaurante.
Nas visitas anteriores, o mesmo espaço estivera vazio. Observo-o, admirando
seu aspecto refinado, os desenhos em estilo oriental realçando-se sobre o fundo
branco. Difícil não perceber o quanto sua sofisticação destoa de um ambiente
tão prosaico. À meia luz, o biombo é o recanto da distinção.
Vejo somente parte do corpo e a silhueta projetada sobre
a armação do tabique. Por ter escolhido especificamente aquele local, suponho
que lhe agrade ser reservado. Como os demais clientes do salão, também
acomodado à mesa. Só lhe consigo observar as pernas cruzadas, e a mão direita
que ocasionalmente repousa sobre o joelho. É fumante, de fato. Percebo isso
acompanhando a brasa do cigarro a ziguezaguear. No mais, apenas especulação. O
garçom retorna, trazendo o cafezinho. Hesito. Se a sombra atrás do biombo
pertencer a algum conhecido será surpreendente e constrangedor. Vou ao
restaurante porque ali imagino esconder-me dos velhos companheiros do escritor,
a gente que costumava cumprimentá-lo outrora. Contudo, se mesmo no subúrbio
tropeçamos uns nos outros… Talvez o conveniente seja ir até sua mesa
interpelá-lo, confrontar-lhe as intenções. Mas receio. O café à minha frente
exala um aroma cativante e, talvez querendo encorajar-me, a sombra atrás do
biombo parece também sorver de uma chávena.
O sabor é forte e agradável ao paladar. Causa-me, além da satisfação física
– bastante rara ultimamente –, a sensação de
aquecer-me as entranhas. Considerando as semanas anteriores, supunha o mesmo
gosto insosso colando-se à saliva, a mesma decepção, a certeza de estar aquém
da realidade, de não tê-la como coisa tangível. A grata surpresa deste café me
desperta, vivificando-me durante alguns momentos.
Ele se levanta por trás do biombo. Mãos
vasculhando os bolsos, o dinheiro lançado ao pires displicentemente. Em
seguida, dois passos para o lado. Enfim consigo vê-lo. Confere com atenção o
asseio das vestimentas: paletó branco, perfeita combinação com os cabelos da
mesma tonalidade. Sinto-me, de algum modo, aliviado por não conhecê-lo.
Certamente não o vira frequentando o velho círculo de amizades do escritor, nem
tampouco é figura corriqueira deste subúrbio. O que me parece, a bem da
verdade, é ter fugido de algum longa-metragem das antigas, década de trinta ou
quarenta provavelmente. O típico cidadão europeu daquele período, portando chapéu
e bengala, o fumo constantemente à mão. Concedo-lhe, a princípio, cinquenta
anos, mas é possível que a distância torne o cálculo enganoso. Com bastante
naturalidade, o sujeito atravessa o restaurante, dando a qualquer expectador
atento a impressão de contraste: não combina com a vulgaridade do ambiente. À
saída, só então é que me encara, bosquejando um aceno amistoso.
Mas que tipo
original! Convém ao cinema ou até mesmo à literatura; porém, demasiadamente
anacrônico para os tempos modernos. Inclusive nesta metrópole acostumada às
diferenças, às tribos urbanas, aquele indivíduo ultrapassa os limites da
excentricidade. Saio do café em seguida,
avistando-o à distância de alguns quarteirões. Curioso o modo como trafega
através das calçadas do subúrbio. Ruas e avenidas de aspecto deprimente, como é
habitual, com fuligem borrando fachadas, com imundícies acumulando-se nas
sarjetas. Tudo se mantém à margem, porque aquele sujeito segue impecável, sem
se interromper.
A cadência da passada é harmônica, repetindo-se de
maneira quase matemática, ecoando noite adentro. Por cautela, conservo a
distância de cinquenta metros. Que espécie de atração ou curiosidade é a que me
instiga a segui-lo, isso eu não compreendo. Talvez o café oferecido no
restaurante, a satisfação do sabor assim readquirido, ou mesmo a simpatia comum
despertada por aquilo que é novo e diferente. Certo é que o cicerone segue
desbravando à frente, sem hesitação, conhecedor exímio do caminho. Os bairros
que cruzamos, os viadutos que ascendemos e descemos, as vias ignoradas por onde
adentramos, sobre tudo desaba a neblina característica das horas noturnas. Ela
se aconchega entre as habitações como invólucro ou cortina de algum teatro
enigmático, chegando sempre nos primórdios da madrugada. Interpõe-se entre
olhos e fachadas, entre aquilo que sou e a realidade palpável.
Mal lhe consigo divisar a silhueta. Vejo somente sua figura trêmula, a
definição das formas perdendo-se na brancura da neblina, como se flutuasse.
Mesmo ignorando nosso paradeiro, sigo naquela mesma direção. Escuto seus passos
ainda por alguns minutos, e, instantes depois, o silêncio. Interrompo também a
caminhada. O sujeito decerto percebeu estar sendo seguido, concluo, e talvez me
ataque violentamente agora, rasgando-me com a lâmina do seu punhal. Grande azar
– ou imprudência – ser atraído àquela zona por um homicida lunático. Os jornais
de amanhã estamparão meu retrato nas manchetes, rotulando-me como a nova vítima
do maníaco da madrugada – tal ideia faz com que me sinta profundamente
envergonhado.
Úmido e compacto, o nevoeiro engolfa-nos completamente, tornando impossível
ver, a partir deste momento, até mesmo a cor dos sapatos. Se o tal sujeito
encontra-se parado logo à frente, se é um assassino, se outra coisa qualquer, a
resposta permanece para além da neblina. Conheço desta cidade inclusive os
lugares afastados e, não obstante, o esforço para localizar-me na região
resulta inútil. O que há é somente a capa esbranquiçada, anônima, e o mistério
por trás da serração. Este silêncio terrível, claro, resta-me também.
Sutilmente sopra sobre mim o ar morno de uma viração – como brisa campestre,
julgo –, diversa dos ventos da madrugada. Que é isso? Não, talvez esteja
enlouquecendo! O fenômeno repete-se, e tenho novamente aquela impressão: diz o
meu nome. São letras emboladas num murmúrio; porém, perceptíveis o suficiente.
Sinto-me atraído ao interior da neblina; em contrapartida, controlo os membros
rebeldes, decretando a imprudência radical do ato. É o medo. Medo e atração
confabulam, discordantes. Seguir em frente... Recuar... Adensando-se, o
nevoeiro já se torna quase um cárcere palpável. Uns passos apenas, e o mistério
à espera! No entanto, percorre-me um arrepio de alto a baixo, e, meia volta,
acabo tateando o caminho de regresso.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).
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