" " NOVA CASTÁLIA: OS PARADOXOS DA FORMAÇÃO PSICANALÍTICA

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domingo, 24 de junho de 2018

OS PARADOXOS DA FORMAÇÃO PSICANALÍTICA




Sabendo-se que Sigmund Freud estabeleceu as bases da psicanálise sem necessariamente vinculá-la ao status acadêmico, nem tampouco limitá-la ao âmbito da medicina, é natural que sempre tenha estado em debate o modo como são formados os psicanalistas. Que eles não se formam nas universidades, isso está evidente, e mostra decerto que a psicanálise deseja conservar-se liberta das fronteiras muitas vezes repressivas do meio universitário. Que eles podem ser encontrados em outras profissões, além da atividade médica, isso também foi estabelecido claramente por Freud em seu trabalho A Questão da Psicanálise Leiga. Tendo inaugurado uma ciência original, e tencionando manter seu estado de liberdade, o pai da psicanálise concebeu um método também único de formação. Para ele, o psicanalista precisa vivenciar em sua própria existência os resultados do método analítico, ou seja, é imprescindível que seu subconsciente seja escrutado, de preferência por outro profissional mais experiente, trazendo à tona as verdades ocultas em sua psique, e experimentando, na prática, o processo de transferência. Sem dúvida, é importante que o psicanalista em formação obtenha o conhecimento teórico das obras legadas por Freud – e de outros analistas relevantes –, e seja acompanhado por uma supervisão competente. Todos esses três elementos formam o chamado tripé psicanalítico.

Para além da questão formativa, é relevante levarmos em consideração que o psicanalista deve ter em sua personalidade características essenciais para a atividade analítica. Por exemplo, um espírito investigativo capaz de escrutar o inconsciente do analisando de forma a extrair dali aquilo que elucide e cure suas neuroses, e disso se depreende também um forte compromisso com a verdade. De modo semelhante, é imprescindível que o psicanalista demonstre uma aptidão natural para empreender pesquisas em áreas intelectuais paralelas como a antropologia, a literatura, a religião, a simbologia, etc. Boa parcela dos estudos publicados pelos psicanalistas mais renomados trata de abordar a psicanálise em contato com essas áreas próximas, e isso então nos compromete a estudá-las com interesse. Por fim, cabe igualmente desenvolver um sentimento de profunda humanidade, afinal, como Sigmund Freud mesmo afirmou, a psicanálise foi criada com o intuito de aliviar o sofrimento psicológico das pessoas. Isto significa que a vocação do analista necessita estar amparada por um olhar de real compaixão dirigido ao outro. Tais características não são exatamente oferecidas no processo formativo de um curso – embora sejam sugeridas vivamente. Provavelmente algumas delas são parte integrante da natureza do indivíduo que busca formar-se psicanalista, e outras precisam ser buscadas por um empenho no estudo constante da temática.

A questão da formação psicanalítica adquire contornos diferentes com o trabalho de Jacques Lacan. Sua atuação no âmbito da psicanálise suscitou um retorno aos conceitos originais expostos por Freud e, ao mesmo tempo, uma ruptura com o establishment psicanalítico. Quem deveria autorizar o psicanalista? Que grupo ou instituição estaria suficientemente apto a decidir isso? Para Lacan, somente o próprio psicanalista teria a condição de a si mesmo se autorizar. O psicanalista só se autoriza por si mesmo, ele assevera, retirando de qualquer instituição a autoridade suprema de determinar quem pode ou não pode ser psicanalista, e dessa maneira protegendo a psicanálise contra um risco de recalque que decerto preocupara Sigmund Freud. Mais tarde, Lacan acrescenta a essa mesma sentença as seguintes palavras: e por alguns outros. Ora, isso aparentemente constitui uma contradição, afinal, se o psicanalista só se autoriza por si mesmo, como conciliar essa autorização com a necessidade de outros? Trata-se de um paradoxo de resolução bastante complicada. Se por um lado a si mesmo se autoriza, por outro lado precisa daqueles a quem se submeterá em um processo de análise pessoal – vivenciando o fato da transferência – e também em um trabalho de supervisão que o aconselhe nos atendimentos.

Cada analista tem sua história de formação, sua trajetória na psicanálise, seu estilo pessoal, sua abordagem, seu modo de oferecer auxílio terapêutico ao analisando. É importante recordar que o psicanalista nunca encerra totalmente a formação, de fato, o formar-se psicanalista é uma tarefa permanente que não se fecha ao receber algum certificado. Também a análise pessoal ou a autoanálise consiste em algo que muito provavelmente acompanhará o psicanalista durante toda a sua existência, sobretudo considerando que ao lidar com analisandos, surgirão sempre questionamentos que confrontarão o profissional. Portanto, nunca se deve buscar o ideal da realização psicanalítica neste ou naquele indivíduo como um elemento constatável ou como um documento – um diploma, por exemplo – que possa ser averiguado. A estrutura que os cursos oferecem são meios convenientes, mas o processo que conduz um psicanalista a autorizar-se deve prosseguir durante todo o caminho daquele que se dedicará à prática psicanalítica. Tendo colocado essas observações, termino evocando uma situação sugestiva: ao estabelecer o diálogo como método de conhecer o inconsciente e, dessa maneira, curar as neuroses, Sigmund Freud aproximou a psicanálise mais da filosofia, afastando-a talvez dos procedimentos médicos que se baseiam na terapêutica de ordem fisiológica. Tal circunstância nos conduz a recordar que a psicanálise, como seu próprio fundador desejou, não deve se manter circunscrita à medicina. Ela é também um ciência leiga.


Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas) e O Arcano da Morte (romance). 



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