Sabendo-se que Sigmund Freud estabeleceu
as bases da psicanálise sem necessariamente vinculá-la ao status acadêmico, nem
tampouco limitá-la ao âmbito da medicina, é natural que sempre tenha estado em
debate o modo como são formados os psicanalistas. Que eles não se formam nas
universidades, isso está evidente, e mostra decerto que a psicanálise deseja
conservar-se liberta das fronteiras muitas vezes repressivas do meio
universitário. Que eles podem ser encontrados em outras profissões, além da
atividade médica, isso também foi estabelecido claramente por Freud em seu
trabalho A Questão da Psicanálise Leiga.
Tendo inaugurado uma ciência original, e tencionando manter seu estado de
liberdade, o pai da psicanálise concebeu um método também único de formação.
Para ele, o psicanalista precisa vivenciar em sua própria existência os
resultados do método analítico, ou seja, é imprescindível que seu subconsciente
seja escrutado, de preferência por outro profissional mais experiente,
trazendo à tona as verdades ocultas em sua psique, e experimentando, na
prática, o processo de transferência. Sem dúvida, é importante que o
psicanalista em formação obtenha o conhecimento teórico das obras legadas por
Freud – e de outros analistas relevantes –, e seja acompanhado por uma
supervisão competente. Todos esses três elementos formam o chamado tripé
psicanalítico.
Para além da questão formativa, é
relevante levarmos em consideração que o psicanalista deve ter em sua
personalidade características essenciais para a atividade analítica. Por
exemplo, um espírito investigativo capaz de escrutar o inconsciente do analisando
de forma a extrair dali aquilo que elucide e cure suas neuroses, e disso se
depreende também um forte compromisso com a verdade. De modo semelhante, é
imprescindível que o psicanalista demonstre uma aptidão natural para empreender
pesquisas em áreas intelectuais paralelas como a antropologia, a literatura, a
religião, a simbologia, etc. Boa parcela dos estudos publicados pelos
psicanalistas mais renomados trata de abordar a psicanálise em contato com
essas áreas próximas, e isso então nos compromete a estudá-las com interesse.
Por fim, cabe igualmente desenvolver um sentimento de profunda humanidade,
afinal, como Sigmund Freud mesmo afirmou, a psicanálise foi criada com o
intuito de aliviar o sofrimento psicológico das pessoas. Isto significa que a
vocação do analista necessita estar amparada por um olhar de real compaixão
dirigido ao outro. Tais características não são exatamente oferecidas no
processo formativo de um curso – embora sejam sugeridas vivamente.
Provavelmente algumas delas são parte integrante da natureza do indivíduo que
busca formar-se psicanalista, e outras precisam ser buscadas por um empenho no
estudo constante da temática.
A questão da formação psicanalítica
adquire contornos diferentes com o trabalho de Jacques Lacan. Sua atuação no
âmbito da psicanálise suscitou um retorno aos conceitos originais expostos por
Freud e, ao mesmo tempo, uma ruptura com o establishment psicanalítico. Quem
deveria autorizar o psicanalista? Que grupo ou instituição estaria
suficientemente apto a decidir isso? Para Lacan, somente o próprio psicanalista
teria a condição de a si mesmo se autorizar. O psicanalista só se autoriza por si mesmo, ele assevera, retirando
de qualquer instituição a autoridade suprema de determinar quem pode ou não
pode ser psicanalista, e dessa maneira protegendo a psicanálise contra um risco
de recalque que decerto preocupara Sigmund Freud. Mais tarde, Lacan acrescenta
a essa mesma sentença as seguintes palavras: e por alguns outros. Ora, isso aparentemente constitui uma contradição,
afinal, se o psicanalista só se autoriza por si mesmo, como conciliar essa
autorização com a necessidade de outros? Trata-se de um paradoxo de resolução
bastante complicada. Se por um lado a si mesmo se autoriza, por outro lado
precisa daqueles a quem se submeterá em um processo de análise pessoal –
vivenciando o fato da transferência – e também em um trabalho de supervisão que
o aconselhe nos atendimentos.
Cada analista tem sua história de
formação, sua trajetória na psicanálise, seu estilo pessoal, sua abordagem, seu
modo de oferecer auxílio terapêutico ao analisando. É importante recordar que o
psicanalista nunca encerra totalmente a formação, de fato, o formar-se
psicanalista é uma tarefa permanente que não se fecha ao receber algum
certificado. Também a análise pessoal ou a autoanálise consiste em algo que
muito provavelmente acompanhará o psicanalista durante toda a sua existência,
sobretudo considerando que ao lidar com analisandos, surgirão sempre
questionamentos que confrontarão o profissional. Portanto, nunca se deve buscar
o ideal da realização psicanalítica neste ou naquele indivíduo como um elemento
constatável ou como um documento – um diploma, por exemplo – que possa ser
averiguado. A estrutura que os cursos oferecem são meios convenientes, mas o
processo que conduz um psicanalista a autorizar-se deve prosseguir durante todo
o caminho daquele que se dedicará à prática psicanalítica. Tendo colocado essas
observações, termino evocando uma situação sugestiva: ao estabelecer o diálogo
como método de conhecer o inconsciente e, dessa maneira, curar as neuroses,
Sigmund Freud aproximou a psicanálise mais da filosofia, afastando-a talvez dos
procedimentos médicos que se baseiam na terapêutica de ordem fisiológica. Tal
circunstância nos conduz a recordar que a psicanálise, como seu próprio
fundador desejou, não deve se manter circunscrita à medicina. Ela é também um
ciência leiga.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas) e O Arcano da Morte (romance).
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