Para
além dos conceitos puramente teóricos, a psicanálise é uma prática que não se
limita ao uso no consultório, e isso certamente a torna passível de ser
influente também em outros hemisférios. Sem dúvida, ela foi criada para tratar
de doenças psicológicas, mas suas estruturas introduziram-se em áreas da mais
distintas. Sigmund Freud popularizou termos como inconsciente, pré-consciente e
consciente, elementos constitutivos de sua teoria topográfica, esquadrinhando
assim a mente humana, e fazendo com que outras áreas do conhecimento
assimilassem, a posteriori, esses mesmos elementos. Isso demonstra a força de
tudo que esse médico austríaco concebeu, tendo enfrentado inicialmente bastante
resistência, e alcançando êxito após muito trabalho e persistência.
Lendo recentemente A Preparação do Ator, obra escrita pelo diretor de
teatro russo Constantin Stanislavski, encontro esse diálogo com o professor
Tórtsov:
“–
O subconsciente é inacessível ao nosso consciente. Não podemos penetrar nesse
domínio. Se, por algum motivo, o fazemos, o subconsciente se transforma em
consciente e morre... O resultado é um dilema: espera-se que criemos por
inspiração; só o subconsciente nos dá inspiração e, entretanto, parece que só
podemos utilizar esse subconsciente por meio do nosso consciente, que o mata.
Há, infelizmente, uma saída. Achamos a solução por um processo indireto e não
diretamente. Na alma do ser humano há certos elementos que estão sujeitos ao
consciente à vontade. Essas partes acessíveis podem, por sua vez, agir sobre
processos psíquicos involuntários. É claro que isto reclama um trabalho criador
complicadíssimo. Esse trabalho, em parte, é realizado sob o controle do nosso
consciente, mas uma proporção muito mais significativa é subconsciente e
involuntária. A fim de despertar o subconsciente para o trabalho criador,
emprega-se uma técnica especial. Temos que deixar à natureza tudo o que for
subconsciente no sentido total da palavra, dirigindo-nos, apenas, àquilo que
está ao nosso alcance. Quando o subconsciente, quando a intuição entra em nosso
trabalho, temos que saber como não interferir. Não nos pode criar sempre
subconscientemente e com inspiração – um gênio assim não existe! A nossa arte,
portanto, nos ensina – antes de mais nada a criar conscientemente e certo, pois
esse é o melhor meio de abrir caminho para o florescimento do inconsciente que
é a inspiração. Quanto mais momento conscientemente criadores vocês tiverem nos
seus papéis, maiores serão as possibilidades de um surto de inspiração.”
Nessa exposição, Stanislavski mostra a tradução em linguagem teatral de
termos relativos à psicanálise. Para atuar com qualidade, o ator necessita submeter-se
à inspiração, e essa tal inspiração depende de revelar-se o conteúdo do
inconsciente – ou subconsciente, conforme o texto –, de modo espontâneo, manifestando-se
depois de maneira consciente. Há uma força oculta na constituição psicológica
de todos os indivíduos, e sabendo-se utilizá-la convenientemente, é possível
transmutá-la em ato criativo. Sendo também o ator dotado de uma estrutura
psicológica complexa, ou seja, subdividida tal como Freud idealizou na sua
teoria topográfica, existe uma correlação entre inconsciente e consciente,
mediada pelo pré-consciente. No caso do processo de formação proposto por
Stanislavski, os conceitos psicanalíticos não se prestam exatamente à cura de
neuroses, mas sim ao aprimoramento do trabalho teatral, e isso então nos
demonstra que as descobertas freudianas não se limitam exclusivamente ao
processo psicoterápico, mas a toda uma gama de situações que transcendem o que
é usual.
Mais adiante, no texto, o professor Tórtsov ensina:
“A utilização do vapor, da eletricidade, do
vento e de outras forças involuntárias da natureza depende da inteligência do
engenheiro. O nosso poder subconsciente não pode funcionar sem o seu respectivo
engenheiro – nossa técnica consciente. Só quando o ator sente que sua vida
interior e exterior em cena está fluindo natural e normalmente, nas
circunstâncias que o envolvem, é que as fontes mais profundas do seu
subconsciente se entreabrem de leve e delas lhe chegam sentimentos que, nem
sempre, podemos analisar. Durante um maior ou menor período de tempo, eles se
apossam de nós, sempre que algum instinto interior os comanda. Como não
entendemos esse poder soberano e não o podemos estudar, nós, atores,
contentamo-nos em chamá-lo simplesmente natureza. Mas se infringirmos as leis
da vida orgânica normal e deixarmos de funcionar certo, então esse
subconsciente sensibilíssimo assusta-se e vai-se. Para evitar que isso
aconteça, planejem primeiro o papel conscientemente e depois representem-nos
com veracidade. A esta altura é essencial o realismo e até mesmo o naturalismo
na elaboração interior do papel, pois isto obriga o subconsciente a funcionar e
induz surtos de inspiração”.
Todo
o diálogo suscitado acima reafirma novamente aquilo que antes mencionei, a
saber: quando uma teoria revela-se bem-sucedida – e esse é o caso da teoria
topográfica da psicanálise –, dissemina-se pela sociedade, deitando influência
sobre outros ramos de atividade. Em sua viagem à América do Norte, no ano de
1909, Sigmund Freud teria dito a Jung: “eles não sabem que estamos lhes
trazendo a peste”, referindo-se às ideias revolucionárias que chegavam, então,
aos médicos norte-americanos. De fato, a psicanálise “contaminou” o debate,
talvez de um modo positivo, e desde seu surgimento podemos constatar em
diversas áreas do conhecimento o quanto isso é verdadeiro.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).
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