" " NOVA CASTÁLIA: STANISLAVSKI E A TEORIA TOPOGRÁFICA DE FREUD

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domingo, 3 de junho de 2018

STANISLAVSKI E A TEORIA TOPOGRÁFICA DE FREUD




Para além dos conceitos puramente teóricos, a psicanálise é uma prática que não se limita ao uso no consultório, e isso certamente a torna passível de ser influente também em outros hemisférios. Sem dúvida, ela foi criada para tratar de doenças psicológicas, mas suas estruturas introduziram-se em áreas da mais distintas. Sigmund Freud popularizou termos como inconsciente, pré-consciente e consciente, elementos constitutivos de sua teoria topográfica, esquadrinhando assim a mente humana, e fazendo com que outras áreas do conhecimento assimilassem, a posteriori, esses mesmos elementos. Isso demonstra a força de tudo que esse médico austríaco concebeu, tendo enfrentado inicialmente bastante resistência, e alcançando êxito após muito trabalho e persistência.

Lendo recentemente A Preparação do Ator, obra escrita pelo diretor de teatro russo Constantin Stanislavski, encontro esse diálogo com o professor Tórtsov:

“– O subconsciente é inacessível ao nosso consciente. Não podemos penetrar nesse domínio. Se, por algum motivo, o fazemos, o subconsciente se transforma em consciente e morre... O resultado é um dilema: espera-se que criemos por inspiração; só o subconsciente nos dá inspiração e, entretanto, parece que só podemos utilizar esse subconsciente por meio do nosso consciente, que o mata. Há, infelizmente, uma saída. Achamos a solução por um processo indireto e não diretamente. Na alma do ser humano há certos elementos que estão sujeitos ao consciente à vontade. Essas partes acessíveis podem, por sua vez, agir sobre processos psíquicos involuntários. É claro que isto reclama um trabalho criador complicadíssimo. Esse trabalho, em parte, é realizado sob o controle do nosso consciente, mas uma proporção muito mais significativa é subconsciente e involuntária. A fim de despertar o subconsciente para o trabalho criador, emprega-se uma técnica especial. Temos que deixar à natureza tudo o que for subconsciente no sentido total da palavra, dirigindo-nos, apenas, àquilo que está ao nosso alcance. Quando o subconsciente, quando a intuição entra em nosso trabalho, temos que saber como não interferir. Não nos pode criar sempre subconscientemente e com inspiração – um gênio assim não existe! A nossa arte, portanto, nos ensina – antes de mais nada a criar conscientemente e certo, pois esse é o melhor meio de abrir caminho para o florescimento do inconsciente que é a inspiração. Quanto mais momento conscientemente criadores vocês tiverem nos seus papéis, maiores serão as possibilidades de um surto de inspiração.”

Nessa exposição, Stanislavski mostra a tradução em linguagem teatral de termos relativos à psicanálise. Para atuar com qualidade, o ator necessita submeter-se à inspiração, e essa tal inspiração depende de revelar-se o conteúdo do inconsciente – ou subconsciente, conforme o texto –, de modo espontâneo, manifestando-se depois de maneira consciente. Há uma força oculta na constituição psicológica de todos os indivíduos, e sabendo-se utilizá-la convenientemente, é possível transmutá-la em ato criativo. Sendo também o ator dotado de uma estrutura psicológica complexa, ou seja, subdividida tal como Freud idealizou na sua teoria topográfica, existe uma correlação entre inconsciente e consciente, mediada pelo pré-consciente. No caso do processo de formação proposto por Stanislavski, os conceitos psicanalíticos não se prestam exatamente à cura de neuroses, mas sim ao aprimoramento do trabalho teatral, e isso então nos demonstra que as descobertas freudianas não se limitam exclusivamente ao processo psicoterápico, mas a toda uma gama de situações que transcendem o que é usual.

Mais adiante, no texto, o professor Tórtsov ensina:

“A utilização do vapor, da eletricidade, do vento e de outras forças involuntárias da natureza depende da inteligência do engenheiro. O nosso poder subconsciente não pode funcionar sem o seu respectivo engenheiro – nossa técnica consciente. Só quando o ator sente que sua vida interior e exterior em cena está fluindo natural e normalmente, nas circunstâncias que o envolvem, é que as fontes mais profundas do seu subconsciente se entreabrem de leve e delas lhe chegam sentimentos que, nem sempre, podemos analisar. Durante um maior ou menor período de tempo, eles se apossam de nós, sempre que algum instinto interior os comanda. Como não entendemos esse poder soberano e não o podemos estudar, nós, atores, contentamo-nos em chamá-lo simplesmente natureza. Mas se infringirmos as leis da vida orgânica normal e deixarmos de funcionar certo, então esse subconsciente sensibilíssimo assusta-se e vai-se. Para evitar que isso aconteça, planejem primeiro o papel conscientemente e depois representem-nos com veracidade. A esta altura é essencial o realismo e até mesmo o naturalismo na elaboração interior do papel, pois isto obriga o subconsciente a funcionar e induz surtos de inspiração”.

Todo o diálogo suscitado acima reafirma novamente aquilo que antes mencionei, a saber: quando uma teoria revela-se bem-sucedida – e esse é o caso da teoria topográfica da psicanálise –, dissemina-se pela sociedade, deitando influência sobre outros ramos de atividade. Em sua viagem à América do Norte, no ano de 1909, Sigmund Freud teria dito a Jung: “eles não sabem que estamos lhes trazendo a peste”, referindo-se às ideias revolucionárias que chegavam, então, aos médicos norte-americanos. De fato, a psicanálise “contaminou” o debate, talvez de um modo positivo, e desde seu surgimento podemos constatar em diversas áreas do conhecimento o quanto isso é verdadeiro.    


Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).



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