" " NOVA CASTÁLIA: MEDITAÇÕES SOBRE DIVERSIDADE CULTURAL E XENOFOBIA

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segunda-feira, 11 de junho de 2018

MEDITAÇÕES SOBRE DIVERSIDADE CULTURAL E XENOFOBIA



1.     

Por natureza, o homem busca viver em sociedade, e essa existência social exige o desenvolvimento de uma cultura. Há considerável variedade de culturas, e elas manifestam-se de inúmeras maneiras, algumas sobrevivendo durante um tempo considerável, outras desaparecendo na poeira da história. Certas culturas deitaram tamanha influência em boa parte das civilizações que temos consequentemente a impressão de que foram capazes de alçar-se sobre as demais, ainda que a ótica do relativismo cultural receie atribuir a esta ou aquela específica características de superioridade. Sem dúvida, o conceito de superioridade da raça ariana suscitou o surgimento do nazismo na Alemanha, mas não deixa de ser verdadeiro que algumas culturas conseguiram elevar o nível das sociedades humanas, como mostra o caso da Grécia Antiga. A filosofia grega foi capaz de marcar profundamente não apenas o Império Macedônico: também se tornou relevante para a construção intelectual do cristianismo e do Islã. Quando estudamos a história do direito, analisamos mais detidamente a contribuição romana, e ao agirmos assim realizamos uma escolha. Por que o direito romano tem tanta relevância e não o código de Hamurabi, por exemplo, ou a lei do talião ou a sharia muçulmana? Pode-se argumentar que o direito ocidental dependeu essencialmente da contribuição latina, no entanto, devemos admitir que a escolha pelo direito romano se baseia em uma concepção de superioridade também, ou seja, compreendemos que a aplicação das leis dentro da perspectiva do Império Romano revelou-se mais eficiente e justa na tarefa de organizar legalmente a sociedade. Isso mostra um traço superior dos romanos que exige ser admitido sem esquecermos o fato de que o Império manteve um domínio severo sobre diversas nações.

Porém, observar a questão dentro de uma ótica civilizacional não é o suficiente, afinal, cultura é algo que se refere aos indivíduos. Se nascemos em um contexto cultural com chances consideráveis de exercer influência histórica – como foram os contextos grego e romano – ou se nos coube ter nascido em uma situação cultural menos influente – como a situação dos índios tupi-guarani ou dos aborígenes australianos – o fato é que, de uma forma ou de outra, sempre herdamos uma cultura, e isso é um elemento formador do nosso caráter. Mas o que é a cultura? A história de um povo é composta de uma determinada quantidade de elementos como o idioma, a literatura, a religião, as tendências políticas, as estruturas econômicas, etc., e esses elementos, sendo predominantes, formam uma cultura. Ser oriundo de uma circunstância significa carregar consigo essa herança cultural, e significa também desenvolver determinadas características concernentes aos indivíduos pertencentes a essa situação. Neste sentido, ainda que alguém herde historicamente a contribuição de gregos e romanos, isso não o torna mais valioso nem superior aos indígenas brasileiros ou aos aborígenes australianos. Ou seja, não existe mérito pessoal no mero fato de receber no nascimento certa cultura como legado, a menos que o indivíduo seja, ele próprio, suficientemente capaz de acrescentar a essa cultura uma contribuição pessoal valiosa, dignificando-a com seus talentos.

A diversidade cultural, se nos oferece a oportunidade de conhecer a humanidade em seus mais variados aspectos – o que é certamente vantajoso para o campo investigativo –, também ocasiona um choque nem sempre confortável. Pois cada cultura estabelece uma visão particular do mundo, e cada visão de mundo deseja ter o monopólio da verdade. Para os judeus, só existe um Deus (Yaveh), e todas as outras divindades correspondem à idolatria. Para os cristãos, Jesus é o messias aguardado pela tradição judaica, o redentor da humanidade, e não existe salvação a não ser Nele. Para os muçulmanos, o judaísmo e o cristianismo são meras fases transitórias no processo de revelação divina cuja culminância se dá com o nascimento de Maomé e com o advento do Corão. Um estudioso sério deve observar as três principais religiões monoteístas com o intuito de conhecê-las mais a fundo, sem que isso necessariamente produza um choque. Porém, esse espírito investigativo, que se aconselha seja alheio à intolerância, nem sempre é compartilhado pelos adeptos dessas religiões. Toda crença religiosa professa uma verdade, e embora o relativismo seja utilizado dentro de uma perspectiva intelectual, não encontra semelhante receptividade na esfera da fé, ou seja, a fé dos judeus, cristãos e muçulmanos se demonstra única e inconciliável. Desse modo, não chega a surpreender que no choque das civilizações ocorram conflitos.

Quando o problema da diversidade cultural é abordado, a isto se atrela outra questão relevante: a tolerância. Utiliza-se atualmente esse tema dentro das esferas políticas, ideológicas, sociológicas, filosóficas, etc., sempre na tentativa de alcançar a boa convivência entre pessoas de culturas diferentes. No intuito de constituir uma sociedade pacífica, a compreensão das diferenças humanas é incentivada, fomentando-se igualmente esse espírito de tolerância. Conquanto tais conceitos façam parte das discussões contemporâneas, a realidade é que as questões relativas à diversidade cultural e à tolerância no contexto da convivência social nos antecede em alguns séculos. Com o advento da Reforma Protestante e o surgimento posterior de inúmeras igrejas cristãs dissidentes, a cristandade na Europa chegou ao termo, e o catolicismo deixou de ser hegemônico. Tal fato suscitou um embate entre católicos e protestantes que ameaçava lançar o continente europeu em uma guerra religiosa sangrenta. Observando esse fato, o filósofo empirista John Locke escreveu o texto chamado Carta Acerca da Tolerância: “A tolerância para os defensores de opiniões opostas acerca de temas religiosos está tão de acordo com o Evangelho e com a razão que parece monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma luz tão clara.” Sua tese principal consistia em estabelecer um ambiente no qual as diferenças religiosas pudessem conviver com tranquilidade, respeitando-se o direito de cada denominação cristã. Se a divisão dos fiéis seguidores de Cristo não se apresentava como uma situação ideal – e os cismas geralmente eram encarados como fatos dolorosos na história do cristianismo –, ao menos desse modo promovia-se a tolerância entre os cidadãos.

2.

No livro Introdução à Sociologia, o autor Reinaldo Dias escreve a respeito da globalização:

“A cultura global emergente consiste em categorias e padrões universais pelos quais as diferenças culturais se tornam mutuamente inteligíveis e compatíveis. As sociedades ao redor do mundo estão a tornar-se, em alguns aspectos, mais semelhantes umas às outras. A emergência de uma cultura global vai aos poucos constituindo-se como um sistema de referências pelo qual as sociedades locais reinterpretam a sua cultura.”

Sem dúvida, devemos admitir que essa cultura global emergente – a globalização – tende a estreitar os laços entre pessoas de diferentes lugares, diminuindo as distâncias geográficas, facilitando a compreensão das variadas manifestações culturais, e isso se deve, sobretudo, ao avanço das tecnologias que, suscitando meios de comunicação avançados, constituiu a possibilidade de redes nas quais as relações se tornaram virtualmente próximas. Trata-se de um fenômeno algo revolucionário na história que foi antecedido milhares de séculos atrás por outros fatos semelhantes. Por exemplo, as navegações gregas expandiram horizontes, tornando possível o conhecimento de outros povos, situação que criou o cenário para o surgimento da filosofia. Também devemos evocar a expansão territorial do Império Romano, deitando sua influência sobre diversas nações que se mantiveram sob um domínio intenso. De certo modo, tais circunstâncias históricas representam o nascimento de culturas globais, naturalmente com as características peculiares de suas épocas. Na atualidade, como afirma o texto, as “sociedades ao redor do mundo estão a tornar-se, em alguns aspectos, mais semelhantes umas às outras”, o que significa dizer que os fatores da globalização tendem a homogeneizar os comportamentos. De fato, em várias partes do mundo, nós testemunhamos atitudes semelhantes de indivíduos que se encontram debaixo da ascendência de culturas politicamente dominantes, sempre capazes de disseminar seu estilo de vida através das indústrias da moda, do show business, dos movimentos ideológicos, do mercado editorial, etc.

Pode-se, no entanto, sempre recordar que o processo de globalização abole muitos valores culturais pertinentes aos países. Há naturalmente uma perda significativa da identidade de populações que estão sujeitas às influências de culturas dominantes, sobretudo as populações que habitam países cuja história nacional não se mostra tão antiga – como é o caso do Brasil. Principalmente as gerações mais jovens costumam deixar-se influenciar pelas tendências do momento, adquirindo hábitos e utilizando linguagens que não compõem as características da sociedade local. Com isso, se esquecem das próprias raízes, construindo identidades que não encontram referências dentro da circunstância histórica de sua nação. Tal fenômeno tem considerável possibilidade de criar instabilidade social, na medida em que, desaparecendo essa identidade comum e original, perdem-se consequentemente os laços que mantêm vinculadas as pessoas que compõem esta ou aquela população em particular. Se nós trocamos o que somos pela influência superficial de uma cultura estrangeira, muito provavelmente desfazemos os laços que nos vinculam aos outros indivíduos com quem compartilhamos o mesmo espaço geográfico. Desse modo, torna-se bastante difícil compreender o outro, e um povo que não compreende a si mesmo estará propenso a  desuniões e conflitos.

3.

Ser estrangeiro, habitar uma nação diferente, muitas vezes desconhecendo as características singulares do local, tendo que se adaptar rapidamente a uma cultura desconhecida representa, às vezes, uma situação dramática. O sujeito que se arroja nessa aventura o faz motivado por razões variadas: a esperança de encontrar uma existência melhor, o sonho de estudar em universidades no exterior, as necessidades de uma determinada profissão, ou a situação limite da fuga territorial em que subsistam circunstâncias ligadas à guerra. Durante a Segunda Guerra Mundial, milhares de europeus cruzaram o Atlântico, encontrando abrigo em nações da América que os acolheram, tornando-os partícipes de sua história. No Brasil, colônias italianas, alemãs, espanholas, japonesas, portuguesas, etc., comprovam essa realidade. Atualmente, temos a oportunidade de testemunhar a crise de imigração que os europeus enfrentam devido à invasão muçulmana. Países em conflito no Oriente Médio, onde grupos radicais como a Irmandade Muçulmana e o Ísis atuam, não se mostram capazes de conter os combates recorrentes que vitimam a própria população, assim causando a fuga em massa de indivíduos que enfrentam os perigos de naufrágios no Mar Mediterrâneo, sempre na tentativa de conquistar uma vida segura em outro continente. Isso, ao menos, é o que recebemos como informação, ou seja, refiro-me aqui ao discurso midiático, ou então à posição dos governos, embora devamos também levar em consideração as observações pertinentes daqueles que afirmam não se tratar somente da fuga de um conflito bélico, afinal, uma onda considerável de imigrantes, como a que sucede na Europa, supõe a perspectiva de um processo de islamização.

Para além dessas questões migratórias, costumeiramente tratadas de forma demasiado genéricas, existe a experiência dos indivíduos em particular, daqueles que abandonam terra e tradição, família e sociedade, com o objetivo de habitar nações estrangeiras. Quando isso acontece, a pessoa troca os símbolos culturais que está acostumada por outros com os quais ainda não desenvolveu muita afinidade. O entendimento da realidade depende da afinidade com tais símbolos relacionados, por exemplo, ao idioma, à religião, aos costumes, ao trabalho, etc., e sem isso ocorre a sensação de deslocamento. A solidão é algo corriqueiro no decorrer desse processo, e quanto maiores forem as diferenças, também maior é a experiência de não estar completamente adaptado ao meio. Fazer de si mesmo parte integrante de um contexto social alheio às suas origens nunca se mostra tarefa simples, e além dos desafios particulares, há o preconceito daqueles que são cidadãos nascidos no território onde habitam atualmente os estrangeiros. Se por um lado existe o choque de quem está chegando, é suposto que exista, no comportamento dos cidadãos locais, o impulso no sentido de repelir o desconhecido. Uma e outra situação originam-se da experiência superficial do encontro. Havendo um aprofundamento nas relações, o estrangeiro se esforçará a fim de se adaptar ao novo contexto social, tornando-se parte integrante da cultura daquele país, enquanto o habitante local se esforçará também por compreender, em contrapartida, o estrangeiro não como um elemento adverso ou mesmo um invasor, mas sim como alguém perfeitamente capaz de contribuir para a nação, desse modo construindo uma história favorável.

Porém, devemos evocar aqui a possibilidade dessa contribuição estrangeira nem sempre ser assim tão favorável. Trata-se de certa circunstância em que um determinado grupo, conservando as características próprias de sua origem – sobretudo religiosa e linguística – pretender impor à nação que o recebe as características de sua cultura, suplantando as feições culturais do local. No ano de 2009, o governo francês lançou um programa de debates com os seguintes temas: “valorizar a contribuição dos imigrantes” e “compreender o que é ser francês hoje”. Desse modo, pretendia-se encontrar um justo equilíbrio entre a participação dos estrangeiros na sociedade francesa e a conservação necessária da identidade nacional. Com isso, pretendia-se que os indivíduos refletissem seriamente acerca do significado de ser um cidadão francês – nascido ali ou oriundo de outras partes do mundo. Passados quase dez anos, a questão migratória ganhou recentemente contornos dramáticos com o afluxo de árabes, refugiados de guerra que foram recebidos na França. Além do fatídico ataque terrorista ocorrido na famosa casa noturna, o Bataclan, em 13 de novembro de 2015 – um fato que causou comoção não somente na Europa, mas em muitos lugares –, existe também os debates candentes a respeito da perspectiva futura de haver uma sociedade francesa convertida aos ideais islâmicos. Sobre isso, o escritor Michel Houellebecq publicou um romance cujo título Submissão sugere a possibilidade de um candidato muçulmano se tornar presidente daquela nação. O cenário descrito por Houellebecq supõe não apenas o governo sob a direção da Irmandade Muçulmana, mas também uma rápida transformação cultural, com professores convertidos ao Islã assumindo cátedras nas principais universidades francesas, com o incentivo constrangedor ao uso da burca, e um clima de controle repressivo sobre o comportamento sexual dos franceses. Ocorre, dessa maneira, a suplantação de uma cultura por outra de fora, fazendo com que se perca a identidade nacional de um povo.


Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas) e O Arcano da Morte (romance). 


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