3.
O
ESPÍRITO DA VERDADE VOS GUIARÁ
Sempre que a alma humana lança-se em
busca de Deus, é certo necessitar daquela segurança que qualquer
desenvolvimento espiritual exige, e quando me refiro à segurança, naturalmente
não estou mencionando os bens materiais que compõem, por exemplo, toda a
estrutura física de um monastério, embora isso tenha seu valor e importância. Refiro-me,
na realidade, à santa doutrina da Igreja, alicerçada que está nas Sagradas
Escrituras, bem como ao tesouro tradicional que se encontra vinculado à gênese
do cristianismo – neste caso, ainda mais particularmente, da tradição
monástica. Para que o indivíduo não se transvie do caminho que conduz à
verdade, é imprescindível valer-se dessa proteção. Sem dúvida, existem atalhos
perigosos na vida espiritual, becos sombrios, rotas alternativas que ofertam
supostas facilidades, e é provável que todas direcionem a situações
comprometedoras. Mas o caminho que nasce da doutrina bíblica e da tradição,
este sim é o caminho mais seguro para a alma humana. Se o aconselhável é
firmar-se nessa estrada, também se faz necessário tomar cuidado para não se
enrijecer excessivamente ao se valer das soluções convencionais. Pois trilhar a
rota da fé significa avançar na escuridão do raro conhecimento, aceitar a
convivência permanente com o mistério, abdicar de planos pessoais em favor da
Vontade do Senhor, ser instruído diretamente pelo Espírito Santo. No Evangelho
de João (14, 26), Cristo diz: o
Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e
vos recordará tudo o que vos disse.
Quando tememos ser surpreendidos pela ação direta do Paráclito em nossa alma,
lamentavelmente perdemos a chance de receber os ensinamentos complementares que
Deus assim nos concede.
Poucos temas de ordem teológica foram
abordados nas últimas décadas tão frequentemente e com tamanho ardor quanto a
pneumatologia. Sem dúvida, parece existir na Igreja uma sede do Espírito. Há
certas características concernentes ao Paráclito que nos auxiliam a compreender
o que motiva essa atenção especial a Ele dedicada. Por ser representado como o
sopro de Deus, mostra a capacidade de renovar não apenas a Igreja como
instituição, mas principalmente a alma dos cristãos de modo bastante
particular, dispersando o ar viciado e opressivo que já não é capaz de fornecer
alento verdadeiro. Sendo a pessoa divina responsável por transmitir princípio
vital às criaturas, o Espírito é amplamente desejado quando sentimos carecer da
energia essencial que nos conserva vinculado à realidade sagrada. Finalmente,
por ser a forma de manifestação sobrenatural de maior excelência, é buscado
como resposta às expectativas de relação com o divino que os homens alimentam. Portanto,
se há um interesse sincero no que tange a esse assunto, certamente é porque há
necessidades humanas. Nessa circunstância existencial, carecendo receber o
influxo do Espírito Santo com sua potência renovadora e restauradora, o
indivíduo precisa saber que a ligação com a terceira pessoa da Santíssima
Trindade não é algo tão simples. Muitos cristãos gostariam de exercer uma
autoridade tão absoluta sobre o Paráclito a ponto de aprisioná-lo, domesticá-lo
e submetê-lo ao próprio arbítrio, determinando minuciosamente sua atuação.
Poder-se-ia afirmar que existe, inclusive, um lobby bastante organizado no
sentido de vincular o Espírito às mais variadas linhas ideológicas e teológicas
com o intento de alcançar uma justificativa divina para propostas meramente
humanas. Contudo, o Espírito caracteriza-se por ser livre, sopra onde assim
escolher, e quando se constrói um discurso supostamente pneumatológico,
impede-se sua verdadeira ação benfazeja, e, ao invés de renovação, o que a
Igreja encontra é caducidade. Também creio ser relevante observar que o
Espírito Santo não se apresenta como o contraponto à doutrina e à tradição. Seu
processo renovador não tem caráter revolucionário, não visa derrubar as
estruturas vigentes com a intenção de reconstruí-la segundo um paradigma
renovado ou proporcionar uma experiência religiosa desprovida de toda
manifestação ritualística, dogmática, apologética, etc. Mesmo Jesus Cristo não
veio a este mundo para abolir as leis e os profetas: sua missão consistia em
tudo cumprir, levando a história da salvação à plenitude (Mateus 5, 17 – 18).
De fato, existe consonância entre a doutrina, a tradição e o Espírito. A função
do Paráclito sempre foi ensinar e alentar a Igreja, embora exista quem acredite
ser Sua missão desconstruí-la ou substituí-la, desse modo inaugurando um novo
tempo, não como plenitude do tempo antigo, porém como uma espécie de negação[1].
Citando, no Prólogo da Regra, o texto do
Apocalipse (capítulo 2, versículo 7), São Bento convida:
Quem tiver ouvidos, venha ouvir o que o Espírito diz às
Igrejas.
O candidato à vida monástica levará em
conta, portanto, a importância de conservar-se atento a essa voz, não aos
supostos portadores da mensagem – seus instrumentalizadores, digamos –, mas
propriamente à voz do Espírito que não se esquiva do contato pessoal. Santa
Teresa de Ávila nos ensinava que, a respeito das experiências místicas, todo
cristão precisa manter-se atento aos frutos produzidos: sendo bons, as
experiências têm origem divina, caso contrário não. Também o monge pode
utilizar o mesmo expediente ao escutar, com mansidão, o Santo Espírito. Aquilo
que traz perturbação, angústia e amargura não provém de Deus, nem tampouco o
que se pretende revoltoso, agressivo e destruidor. Um dom concedido pelo
Paráclito a determinados indivíduos é o dom da profecia. No Antigo Testamento
existe uma bela manifestação do Espírito de Deus ao profeta Elias: E Deus disse: “Sai e fica na
montanha diante de Iahweh.” E eis que Iahweh passou. Um grande e impetuoso
furacão fendia as montanhas e quebrava os rochedos diante de Iahweh, mas Iahweh
não estava no furacão; e depois do furacão houve um terremoto, mas Iahweh não
estava no terremoto; e depois do terremoto um fogo, mas Iahweh não estava no
fogo; e depois do fogo, o ruído de uma leve brisa. Quando Elias o ouviu, cobriu
o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta (1 Reis 19, 11 – 13). Pode-se
supor que muitos devotem esperança em uma espécie de ação turbulenta de Deus
que, a exemplo do furacão, do terremoto e do fogo provoque um abalo estrondoso
na estrutura física da realidade, no entanto, o Senhor se encontra, de fato, na
leve brisa. Suavemente, dessa forma o Espírito Santo se apresenta, modelando
sem violência a alma do monge, ensinando com paciência, conciliando-se com a
herança doutrinal e tradicional do cristianismo. O espírito de contestação e
rebelião é de outra categoria, uma categoria inferior e intrinsecamente
satânica. Mas quanto ao Espírito de Deus, podemos afirmar que é sempre Santo e
edifica em santidade.
Tanto a doutrina que se baseia nas
Sagradas Escrituras quanto a tradição enriquecida durante os séculos de
cristianismo são caminho seguro, como disse, e ali o percurso não apresenta
perigos, sendo adequado dizer, inclusive, estar igualmente franqueado a todas
as pessoas. O caminho da interação direta com o Espírito, embora complemente a
via anterior, exibe uma característica diversa: é essencialmente mistério. Hoje
talvez pareça improvável que a Igreja entenda com tranquilidade a convivência
com esse fator miraculoso, contudo, a Igreja primitiva denotava aceitar
naturalmente todas as manifestações misteriosas do Paráclito que se sucederam
ao tempo do Pentecostes. O apóstolo Paulo enumera os carismas distribuídos à
comunidade: sabedoria, ciência, fé, dom de curas, poder de realizar milagres,
profecia, discernimento dos espíritos, falar em línguas e interpretá-las (1 Cor
12, 4 – 11). Não existia, naquele momento, a sensação de estranhamento diante
do contato sobrenatural com a realidade divina. Os cristãos primitivos recebiam
e transmitiam a doutrina de Cristo e desenvolviam sua estrutura litúrgica,
teológica, missionária, etc., convivendo perfeitamente com os carismas. Mas e dentro
de uma comunidade monástica contemporânea, como são recepcionados os dons
carismáticos? Não é característica do Espírito transgredir a edificação
doutrinária e tradicional do cristianismo, entretanto, ao empreender Sua tarefa
de vivificar a Igreja com o sopro divino, inúmeras vezes acaba desnorteando
quem se fecha para o relacionamento íntimo com Deus. Mesmo em um mosteiro que
teoricamente deveria ser contemplativo, acontece de os carismas suscitarem desconforto,
podendo inclusive ser sufocados até quase desaparecer. Trata-se, em casos assim, de
um medo explícito de se defrontar com o sagrado.
[1]
Esse conceito nasce, de
algum modo, em Joaquim de Fiore (século doze). Sobre o tema leia: Nachman
Falbel, Os Espirituais Franciscanos,
1995, São Paulo, Perspectiva.
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