PEDAGOGIA BENEDITINA
MEDITAÇÕES
SOBRE O PRÓLOGO DA REGRA DE S. BENTO
DEDICO
ESTA OBRA AO PAPA EMÉRITO BENTO XVI QUE, ESCOLHENDO O FUNDADOR DA ORDEM
BENEDITINA COMO INSPIRAÇÃO DE SEU PONTIFICADO, REALÇOU NOVAMENTE A IMPORTÂNCIA
DO MONAQUISMO PARA A HISTÓRIA DA IGREJA.
PRIMEIRA
PARTE
1.
A
CONDIÇÃO DO SER HUMANO
Se alguém supõe encontrar na vida
monástica um caminho que conduza à extinção plena dos desejos, terá fatalmente
que admitir o malogro de seus propósitos, pois o ato de desejar pertence à
condição humana, e porque isto é assim, ou seja, legítimo, e porque temos a
necessidade de saber utilizar corretamente aquilo que é tão legítimo, somos
providos da virtude do discernimento. O discernimento deve auxiliar-nos a
reconhecer, entre os desejos possíveis, aqueles que são realmente os melhores,
para nestes recair a nossa escolha. Deus não nos criou como meros autômatos, ao
contrário, criou-nos munidos de liberdade, fornecendo-nos virtudes para que
pudéssemos direcionar o arbítrio com sabedoria. Mas quando a inteligência não
exerce seu domínio sobre os desejos, o ser humano torna-se refém de diversos
impulsos, e permanecendo dividido por apetites múltiplos, aceitando
submeter-se a desejos opostos, acaba imergindo em uma situação de caos espiritual.
Portanto, é imprescindível que façamos utilização competente daquilo que o
Criador dispôs em nossa constituição para que, sendo legítimo desejar,
desejemos o que é mais conveniente. Manter firmemente na memória essa realidade
é de relevância extrema àqueles que buscam a existência monástica: não se trata
de extirpar desde a raiz um elemento constituinte da natureza humana, trata-se
de corrigi-lo e bem ordená-lo segundo o princípio divino. Por esse motivo
existe a Regra: submeter-se a ela significa educar-se ou reeducar-se fazendo
uso de um processo pedagógico favorável. Posso afirmar com bastante segurança
que, em geral, a condição de pecado é causada menos pela presença, na alma, de
fatores extrínsecos que exijam ser extraídos e mais por uma espécie de
desorganização das virtudes próprias do ser humano. Aquele que, havendo
ingressado na vida monástica, compreende essa realidade, saberá aproveitar da
Regra beneditina aquilo que, de fato, ela tem a oferecer.
Há
inúmeras motivações capazes de convencer o indivíduo a ingressar em uma
comunidade monástica, e essas motivações se estendem desde um ponto de vista
sumamente justificável descendo, inclusive, ao ponto das justificativas
irrelevantes. Mesmo que se demonstre contraditório – considerando-se que do
monge exige-se humildade e recolhimento –, muitas pessoas vislumbram ali a
possibilidade de ascender a uma condição social de maior destaque. É factual
que o surgimento de mosteiros, tanto no Oriente quanto no Ocidente, resulta
como consequência de uma busca espiritual, e nela se sacrificam as ambições
mundanas em troca de um encontro com Deus através do silêncio e da solidão. Porém,
também é verdade que, no transcorrer dos séculos, a vida monástica desenvolveu-se
em sentido ligeiramente diverso, reaproximando essas comunidades do ambiente
social, exatamente aquele ambiente do qual tentara distanciar-se, em princípio,
visando uma existência solitária. Conforme se iam transformando em centros de
conservação e difusão da cultura, e começaram a exercer influência econômica
através de suas atividades laborativas[1],
os mosteiros estreitaram novamente laços com o mundo. Naturalmente, além de
ser, em tese, uma referência espiritual, o representante da existência
monástica transformou-se igualmente em figura de relevância pública. Com isso,
vestir o hábito tornou-se um caminho relativamente cômodo para se alçar a outro
patamar da sociedade, sacrificando o ideal da humildade em nome do orgulho
individual. Porém, a exigência da Regra consistia em buscar o recolhimento e a
discrição[2], e
ao se permitir influenciar pelos símbolos de sucesso do mundo, o indivíduo que
se dedica ao monaquismo trai um elemento essencial dessa mesma Regra.
O desenvolvimento histórico do
monaquismo foi salutar, por um lado, ao possibilitar a preservação da herança
cultural do Ocidente no momento em que a civilização romana sucumbia frente às
invasões bárbaras, e, contudo, foi também problemático, por outro lado, ao permitir
que se mitigasse muito daquele rigor pretendido originalmente por Bento de
Núrsia. Uma vida dedicada ao cultivo do campo e ao trabalho artesanal propicia
um tipo de rotina certamente mais severa e rústica do que a caracterizada pelas
atividades intelectuais. Além do papel econômico exercido pelos mosteiros, a
missão cultural a eles atribuída em determinado período transformou
substancialmente o aspecto da existência monástica, produzindo uma situação de
maior conforto contraposta à Regra. Pois bem, a busca de uma situação
confortável que proporcione ao indivíduo estabilidade e segurança financeiras –
ou seja, um futuro garantido – pode ser, e frequentemente acaba sendo,
motivação para ingresso na vida monástica. Neste caso, ocorre de um fator
apenas acidental assumir o lugar de um elemento essencial. Buscar nessa
estrutura somente facilidades consiste em um contraponto ao exemplo dado por
Jesus[3] e,
em consequência, está no sentido inverso daquilo que ensina a Regra beneditina.
Para além do exercício físico do trabalho – cuja função é não só dar glória a
Deus através dos frutos colhidos com o próprio esforço, mas, igualmente, cuidar
para que o monge não incorra em um estado de letargia –, a existência monástica
também solicita o exercício espiritual constante, e, em ambos os casos, a
comodidade é uma espécie de vírus que tudo corrói, malogrando ou então
corrompendo os frutos. Eis onde reside o perigo. A Regra instiga-nos a uma
observância cuidadosa, a uma diligência no sentido de corrigir nossos defeitos,
a uma boa disposição para proceder corretamente segundo o Evangelho, e tudo
pode ser comprometido quando a alma se permite dominar pelo mal do comodismo.
Pôr no centro da discussão o
desenvolvimento histórico do monaquismo e as estruturas oriundas não representa
condenar integralmente uma circunstância que, ao fim e ao cabo, talvez fosse
inevitável. Os mosteiros que se dedicaram a copiar milhares de obras relevantes
da antiguidade e, em seguida, fomentaram o renascimento intelectual do
cristianismo com o vigor dessa herança conservada, empreenderam um verdadeiro
ato de caridade. Se existiu alguma mudança significante de rota, se o objetivo
primeiro da Regra não passava pela atuação cultural, e se tal mudança acabou
ocasionando ciladas para o monge, deve-se antes procurar compreender o fator
acidental – evitando, assim, cair nas ciladas – do que simplesmente pretender rechaçar
a estrutura construída. Porque, de fato, há certa tendência a rechaçar o legado
da história monástica, tendência que, conquanto seja absolutamente extrínseca
ao próprio cristianismo, às vezes suscita vocações bastante desvirtuadas. Menciono
esse fato referindo-me aos conceitos defendidos por alguns setores mais
progressistas da Igreja, cujo objetivo consiste em promover a adaptação da fé
cristã às contingências do tempo. Para tais setores, o peso da tradição
acumulada durante os dois milênios de catolicismo torna impossível uma forma de
movimentação mais ligeira da instituição através da sociedade. Seria necessário,
portanto, trocar os modelos antigos por padrões ágeis e modernos. Seguindo esse
postulado ideológico, os círculos progressistas estimulam o surgimento de uma nova
forma de comportamento monástico que, na realidade, em nada se coaduna com os
princípios da vida contemplativa. Por exemplo, defendem um contato mais aberto
com o mundo em contraponto à intenção original do chamado que consiste no
encontro silente e recolhido com Deus; exigem dos religiosos um modus operandi alicerçado sobre o
ativismo visando, desse modo, realizar mudanças sociais; tudo isso sempre
combatendo as feições tradicionais do monaquismo, e acusando-o de mostrar-se
incompatível com as necessidades da época vigente. Todas as vezes que alguém
aceita comprometer-se com os votos, e traja o hábito monástico, decide
assimilar a essência da Regra, assimilando consequentemente sua tradição; ao
fazê-lo, no entanto, se aquilo que o motiva for de caráter ideológico, e não
espiritual, de fato encontra-se deturpando o sentido verdadeiro da vida monástica.
Pois não se trata de desconstruir um modelo de experiência cristã ancestral a
fim de construir um modelo novo e mais palatável ao ser humano moderno;
trata-se, isto sim, de assumir totalmente aquilo que pregaram os Padres do
deserto – especificamente neste estudo: São Bento de Núrsia –, conservando a
chama viva dos mosteiros.
O ato de assumir, nos costumes, as
prescrições da Regra e, em consequência, manter a riqueza da tradição
aproxima-se daquilo que considero ser a motivação verdadeira para o ingresso na
existência monástica. Com isso, o monge acerca-se do exemplo deixado pelos
antecessores. Mesmo assim, é necessário ter bastante cuidado com o propósito de
conservar aquilo tudo que o desenvolvimento histórico deixou como herança. Há
belezas artísticas e intelectuais incrustadas nessa estrutura erguida no
decorrer dos séculos, e é fato que elas exercem intenso poder de sedução tanto
sobre os sentidos quanto sobre a inteligência, e embora essas coisas sejam
magníficas, sem dúvida, a simples conservação formal não ocupará o lugar
daquilo que é substancial no monaquismo. Existe uma essência que sustenta os
elementos exteriores, uma fonte de vida que alimenta os membros do corpo, e uma
experiência de caráter sobrenatural que justifica a construção natural. Sem
esse fator, preservar apenas a forma visível significa desprezar a realidade,
ostentando um simples teatro de aparências. O hábito característico da ordem, o
canto gregoriano, a utilização do latim, toda a solenidade que acompanha a
liturgia, os objetos artísticos que decoram as igrejas, enfim, tudo aquilo que
torna bela e memorável a vivência monástica ainda não é razão convincente para
a ela se dedicar. Como disse, exercem profunda influência no imaginário e, por
ser tão fascinantes, induzem certos indivíduos a acreditar que a repetição de
ritos e costumes dessa mesma expressão formal consiste em motivação suficiente.
Mas com isto ainda não chegamos ao centro da vocação. Para que se efetue, no
monge, a transformação é imprescindível compreender que, na Regra, temos um
processo pedagógico cujo objetivo está em consertar o ser humano, reformá-lo
integralmente, retirando-o da condição do pecado, e preparando-o para um
encontro com Deus ainda neste mundo e, posteriormente, no Reino dos Céus.
Logo no começo do Prólogo, São Bento
exorta:
Escuta,
filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa
vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai, para que voltes, pelo labor
da obediência, àquele de quem te afastaste pela negligência da desobediência.
Percebe-se nessas primeiras
palavras um diagnóstico acerca da condição humana: a Regra é dirigida, em tom
exortativo, a quem se afastou (de Deus) pelo desvio da desobediência. Portanto,
existe uma denúncia clara a respeito do estado atual do homem. Todo aquele que
busca o encontro pessoal e silente com o Senhor, dentro de uma comunidade
composta por monges, deve fazê-lo não porque em si mesmo constate qualquer
superioridade, perfeição ou conduta modelar, mas sim por reconhecer-se
exatamente como este que, havendo-se desviado da via correta em razão da
desobediência, a ela necessita regressar submetendo-se à correção. Se
considerarmos que o Prólogo consiste na porta de entrada da existência monástica,
também admitiremos a exigência de descartar as ilusões sobre nossa condição
individual antes de entrar nesse recinto. Uma atitude humilde se transforma em
requisito básico. Submetemo-nos à Regra não porque possuímos uma resistência
acima da média, ao contrário, dela necessitamos como sustentáculo de uma
criatura constituída de fragilidades. Sem essa Regra, o indivíduo é uma
criatura defeituosa, munido dela, torna-se alguém comprometido com um processo
restaurador. E a restauração do ser humano passa forçosamente pela
reorganização das virtudes dadas por Deus. As más escolhas, que nos desviam do
Criador porque correspondem a atos de desobediência, apresentam-se como uma
consequência do caos estabelecido na alma. Quando nós sabemos esperar, meditar,
desfrutar, adorar e amar corretamente, tudo fazemos honrando a Deus. Em
contrapartida, ao deixarmos que as virtudes se desorganizem, esperamos o que
não se cumpre, meditamos o que não tem profundidade nem consistência,
desfrutamos o que não convém, adoramos o que é inferior e amamos de modo passageiro. Há um
desconserto em nós, e, desse modo, afastamo-nos da realização de nosso
potencial.
Para muitos, hoje em dia, valer-se de
uma concepção negativa do status humano decerto parecerá algo desagradável. Como
disse anteriormente, existe uma forma de ditadura ideológica no âmbito
intelectual cujo objetivo é impor proibições, e entre essas proibições
encontra-se o intento de coibir a utilização corrente de conceitos como pecado,
inferno e perdição. Ganhando contornos teológicos mais específicos, essa
tendência afirma que tais conceitos integram um modelo antiquado e reacionário
que precisa ser superado por outro modelo de características modernas e
supostamente iluminadas. Seria urgente, dessa forma, realçar o que existe de
bom na criatura, atirando luzes sobre sua dignidade, sem renegá-la a uma
posição de decadência. Existe uma realidade nessa afirmação: de fato, o homem
carrega em si mesmo a dignidade da gênese divina, e isso justifica plenamente a
imolação salvífica de Jesus Cristo. O ser humano é valioso, e Deus à morte
entregou-se para redimi-lo. Trata-se de uma conclusão inegável sobre a qual se
assenta o cristianismo. Postular esse dado como uma verdade fundamental da fé
tem caráter imprescindível, entretanto, devemos ser cuidadosos para que a
constatação não camufle os malefícios causados pelo pecado em uma estrutura que
é boa em princípio. A dignidade da criatura não está excluída de uma análise
antropológica da Regra. Aliás, isso é parte preponderante de sua motivação. Se
Bento de Núrsia começa o compêndio desvelando a situação de desobediência do
ser humano não é porque lhe agrade apresentar uma imagem decaída. Seu propósito
está alicerçado na esperança de recuperar e preservar a natureza digna do
homem, e partindo do pressuposto de que ela foi conspurcada pela maldade,
oferece-nos a Regra como uma espécie de direcionamento para regressarmos à via
direita.
Não existe incompatibilidade entre a
percepção do estado de decadência do ser humano e o fato positivo da redenção
porque, no contexto teológico, essas duas situações reúnem-se em uma única
estrutura. Mostra-o muito bem a sequência dos livros que compõem a Bíblia: após
ter sido criada por Deus, a humanidade perverte-se, e necessita ser reeducada
pela atuação de patriarcas, profetas e sábios doutores, até o advento do Cristo
Salvador. Mesmo a morte e a ressurreição de Jesus que, arcando com o preço do
pecado, abriu novamente as portas do Céu, vieram acompanhadas pela prática
pedagógica do Filho de Deus. Nos anos de vida pública, Jesus se empenhou em
corrigir e ensinar aqueles que, por Ele, tinham sido chamados. O Sermão da
Montanha sintetiza com primor essa característica de Sua missão. Sem o
sacrifício na cruz, a obediência sincera aos mandamentos não seria suficiente,
mas o sacrifício desprovido dessa mesma obediência também não basta: convém
submeter-se à pedagogia de Jesus Cristo se aquilo que se deseja é conquistar a
vida eterna. Toda experiência monástica – não só a beneditina – busca
constituir um caminho delimitado de seguimento a este ensino. Há muitas regras,
e todas elas são expressões formais da fidelidade à pedagogia cristã dentro de
um estado de vida específico. Dizer pedagogia beneditina significa dizer, então,
vivência dos mandamentos cristãos a partir da compilação feita por São Bento, e
embora ele fosse um monge exemplar, Aquele a quem precisamos escutar é,
sobretudo, Deus.
[1]
Stark, Rodney: A Vitória da Razão – Como o Cristianismo Gerou a Liberdade, os
Direitos do Homem, o Capitalismo e o Sucesso do Ocidente, 2007, Lisboa,
Tribuna da História.
[2] Segundo o Prólogo da Regra de
São Bento, os monges “são aqueles
que, temendo o Senhor, não se tornam orgulhosos por causa de sua boa
observância, mas, julgando que mesmo as coisas boas não podem ser obra sua, mas
foram feitas pelo Senhor, glorificam Aquele que neles opera, dizendo com o
profeta: Não a nós, Senhor, não a nós,
mas ao vosso nome dai glória”.
[3] Mateus 8: 20: E Jesus lhe disse: “As raposas têm tocas e
os pássaros do céu, ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a
cabeça”.
OBRAS DO AUTOR
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