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quinta-feira, 16 de outubro de 2014

PEDAGOGIA BENEDITINA: A CONDIÇÃO DO SER HUMANO




PEDAGOGIA BENEDITINA

MEDITAÇÕES SOBRE O PRÓLOGO DA REGRA DE S. BENTO


DEDICO ESTA OBRA AO PAPA EMÉRITO BENTO XVI QUE, ESCOLHENDO O FUNDADOR DA ORDEM BENEDITINA COMO INSPIRAÇÃO DE SEU PONTIFICADO, REALÇOU NOVAMENTE A IMPORTÂNCIA DO MONAQUISMO PARA A HISTÓRIA DA IGREJA.

PRIMEIRA PARTE


1.        A CONDIÇÃO DO SER HUMANO


Se alguém supõe encontrar na vida monástica um caminho que conduza à extinção plena dos desejos, terá fatalmente que admitir o malogro de seus propósitos, pois o ato de desejar pertence à condição humana, e porque isto é assim, ou seja, legítimo, e porque temos a necessidade de saber utilizar corretamente aquilo que é tão legítimo, somos providos da virtude do discernimento. O discernimento deve auxiliar-nos a reconhecer, entre os desejos possíveis, aqueles que são realmente os melhores, para nestes recair a nossa escolha. Deus não nos criou como meros autômatos, ao contrário, criou-nos munidos de liberdade, fornecendo-nos virtudes para que pudéssemos direcionar o arbítrio com sabedoria. Mas quando a inteligência não exerce seu domínio sobre os desejos, o ser humano torna-se refém de diversos impulsos, e permanecendo dividido por apetites múltiplos, aceitando submeter-se a desejos opostos, acaba imergindo em uma situação de caos espiritual. Portanto, é imprescindível que façamos utilização competente daquilo que o Criador dispôs em nossa constituição para que, sendo legítimo desejar, desejemos o que é mais conveniente. Manter firmemente na memória essa realidade é de relevância extrema àqueles que buscam a existência monástica: não se trata de extirpar desde a raiz um elemento constituinte da natureza humana, trata-se de corrigi-lo e bem ordená-lo segundo o princípio divino. Por esse motivo existe a Regra: submeter-se a ela significa educar-se ou reeducar-se fazendo uso de um processo pedagógico favorável. Posso afirmar com bastante segurança que, em geral, a condição de pecado é causada menos pela presença, na alma, de fatores extrínsecos que exijam ser extraídos e mais por uma espécie de desorganização das virtudes próprias do ser humano. Aquele que, havendo ingressado na vida monástica, compreende essa realidade, saberá aproveitar da Regra beneditina aquilo que, de fato, ela tem a oferecer.

Há inúmeras motivações capazes de convencer o indivíduo a ingressar em uma comunidade monástica, e essas motivações se estendem desde um ponto de vista sumamente justificável descendo, inclusive, ao ponto das justificativas irrelevantes. Mesmo que se demonstre contraditório – considerando-se que do monge exige-se humildade e recolhimento –, muitas pessoas vislumbram ali a possibilidade de ascender a uma condição social de maior destaque. É factual que o surgimento de mosteiros, tanto no Oriente quanto no Ocidente, resulta como consequência de uma busca espiritual, e nela se sacrificam as ambições mundanas em troca de um encontro com Deus através do silêncio e da solidão. Porém, também é verdade que, no transcorrer dos séculos, a vida monástica desenvolveu-se em sentido ligeiramente diverso, reaproximando essas comunidades do ambiente social, exatamente aquele ambiente do qual tentara distanciar-se, em princípio, visando uma existência solitária. Conforme se iam transformando em centros de conservação e difusão da cultura, e começaram a exercer influência econômica através de suas atividades laborativas[1], os mosteiros estreitaram novamente laços com o mundo. Naturalmente, além de ser, em tese, uma referência espiritual, o representante da existência monástica transformou-se igualmente em figura de relevância pública. Com isso, vestir o hábito tornou-se um caminho relativamente cômodo para se alçar a outro patamar da sociedade, sacrificando o ideal da humildade em nome do orgulho individual. Porém, a exigência da Regra consistia em buscar o recolhimento e a discrição[2], e ao se permitir influenciar pelos símbolos de sucesso do mundo, o indivíduo que se dedica ao monaquismo trai um elemento essencial dessa mesma Regra.                       

O desenvolvimento histórico do monaquismo foi salutar, por um lado, ao possibilitar a preservação da herança cultural do Ocidente no momento em que a civilização romana sucumbia frente às invasões bárbaras, e, contudo, foi também problemático, por outro lado, ao permitir que se mitigasse muito daquele rigor pretendido originalmente por Bento de Núrsia. Uma vida dedicada ao cultivo do campo e ao trabalho artesanal propicia um tipo de rotina certamente mais severa e rústica do que a caracterizada pelas atividades intelectuais. Além do papel econômico exercido pelos mosteiros, a missão cultural a eles atribuída em determinado período transformou substancialmente o aspecto da existência monástica, produzindo uma situação de maior conforto contraposta à Regra. Pois bem, a busca de uma situação confortável que proporcione ao indivíduo estabilidade e segurança financeiras – ou seja, um futuro garantido – pode ser, e frequentemente acaba sendo, motivação para ingresso na vida monástica. Neste caso, ocorre de um fator apenas acidental assumir o lugar de um elemento essencial. Buscar nessa estrutura somente facilidades consiste em um contraponto ao exemplo dado por Jesus[3] e, em consequência, está no sentido inverso daquilo que ensina a Regra beneditina. Para além do exercício físico do trabalho – cuja função é não só dar glória a Deus através dos frutos colhidos com o próprio esforço, mas, igualmente, cuidar para que o monge não incorra em um estado de letargia –, a existência monástica também solicita o exercício espiritual constante, e, em ambos os casos, a comodidade é uma espécie de vírus que tudo corrói, malogrando ou então corrompendo os frutos. Eis onde reside o perigo. A Regra instiga-nos a uma observância cuidadosa, a uma diligência no sentido de corrigir nossos defeitos, a uma boa disposição para proceder corretamente segundo o Evangelho, e tudo pode ser comprometido quando a alma se permite dominar pelo mal do comodismo.

Pôr no centro da discussão o desenvolvimento histórico do monaquismo e as estruturas oriundas não representa condenar integralmente uma circunstância que, ao fim e ao cabo, talvez fosse inevitável. Os mosteiros que se dedicaram a copiar milhares de obras relevantes da antiguidade e, em seguida, fomentaram o renascimento intelectual do cristianismo com o vigor dessa herança conservada, empreenderam um verdadeiro ato de caridade. Se existiu alguma mudança significante de rota, se o objetivo primeiro da Regra não passava pela atuação cultural, e se tal mudança acabou ocasionando ciladas para o monge, deve-se antes procurar compreender o fator acidental – evitando, assim, cair nas ciladas – do que simplesmente pretender rechaçar a estrutura construída. Porque, de fato, há certa tendência a rechaçar o legado da história monástica, tendência que, conquanto seja absolutamente extrínseca ao próprio cristianismo, às vezes suscita vocações bastante desvirtuadas. Menciono esse fato referindo-me aos conceitos defendidos por alguns setores mais progressistas da Igreja, cujo objetivo consiste em promover a adaptação da fé cristã às contingências do tempo. Para tais setores, o peso da tradição acumulada durante os dois milênios de catolicismo torna impossível uma forma de movimentação mais ligeira da instituição através da sociedade. Seria necessário, portanto, trocar os modelos antigos por padrões ágeis e modernos. Seguindo esse postulado ideológico, os círculos progressistas estimulam o surgimento de uma nova forma de comportamento monástico que, na realidade, em nada se coaduna com os princípios da vida contemplativa. Por exemplo, defendem um contato mais aberto com o mundo em contraponto à intenção original do chamado que consiste no encontro silente e recolhido com Deus; exigem dos religiosos um modus operandi alicerçado sobre o ativismo visando, desse modo, realizar mudanças sociais; tudo isso sempre combatendo as feições tradicionais do monaquismo, e acusando-o de mostrar-se incompatível com as necessidades da época vigente. Todas as vezes que alguém aceita comprometer-se com os votos, e traja o hábito monástico, decide assimilar a essência da Regra, assimilando consequentemente sua tradição; ao fazê-lo, no entanto, se aquilo que o motiva for de caráter ideológico, e não espiritual, de fato encontra-se deturpando o sentido verdadeiro da vida monástica. Pois não se trata de desconstruir um modelo de experiência cristã ancestral a fim de construir um modelo novo e mais palatável ao ser humano moderno; trata-se, isto sim, de assumir totalmente aquilo que pregaram os Padres do deserto – especificamente neste estudo: São Bento de Núrsia –, conservando a chama viva dos mosteiros.

O ato de assumir, nos costumes, as prescrições da Regra e, em consequência, manter a riqueza da tradição aproxima-se daquilo que considero ser a motivação verdadeira para o ingresso na existência monástica. Com isso, o monge acerca-se do exemplo deixado pelos antecessores. Mesmo assim, é necessário ter bastante cuidado com o propósito de conservar aquilo tudo que o desenvolvimento histórico deixou como herança. Há belezas artísticas e intelectuais incrustadas nessa estrutura erguida no decorrer dos séculos, e é fato que elas exercem intenso poder de sedução tanto sobre os sentidos quanto sobre a inteligência, e embora essas coisas sejam magníficas, sem dúvida, a simples conservação formal não ocupará o lugar daquilo que é substancial no monaquismo. Existe uma essência que sustenta os elementos exteriores, uma fonte de vida que alimenta os membros do corpo, e uma experiência de caráter sobrenatural que justifica a construção natural. Sem esse fator, preservar apenas a forma visível significa desprezar a realidade, ostentando um simples teatro de aparências. O hábito característico da ordem, o canto gregoriano, a utilização do latim, toda a solenidade que acompanha a liturgia, os objetos artísticos que decoram as igrejas, enfim, tudo aquilo que torna bela e memorável a vivência monástica ainda não é razão convincente para a ela se dedicar. Como disse, exercem profunda influência no imaginário e, por ser tão fascinantes, induzem certos indivíduos a acreditar que a repetição de ritos e costumes dessa mesma expressão formal consiste em motivação suficiente. Mas com isto ainda não chegamos ao centro da vocação. Para que se efetue, no monge, a transformação é imprescindível compreender que, na Regra, temos um processo pedagógico cujo objetivo está em consertar o ser humano, reformá-lo integralmente, retirando-o da condição do pecado, e preparando-o para um encontro com Deus ainda neste mundo e, posteriormente, no Reino dos Céus.
Logo no começo do Prólogo, São Bento exorta:

Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai, para que voltes, pelo labor da obediência, àquele de quem te afastaste pela negligência da desobediência.

Percebe-se nessas primeiras palavras um diagnóstico acerca da condição humana: a Regra é dirigida, em tom exortativo, a quem se afastou (de Deus) pelo desvio da desobediência. Portanto, existe uma denúncia clara a respeito do estado atual do homem. Todo aquele que busca o encontro pessoal e silente com o Senhor, dentro de uma comunidade composta por monges, deve fazê-lo não porque em si mesmo constate qualquer superioridade, perfeição ou conduta modelar, mas sim por reconhecer-se exatamente como este que, havendo-se desviado da via correta em razão da desobediência, a ela necessita regressar submetendo-se à correção. Se considerarmos que o Prólogo consiste na porta de entrada da existência monástica, também admitiremos a exigência de descartar as ilusões sobre nossa condição individual antes de entrar nesse recinto. Uma atitude humilde se transforma em requisito básico. Submetemo-nos à Regra não porque possuímos uma resistência acima da média, ao contrário, dela necessitamos como sustentáculo de uma criatura constituída de fragilidades. Sem essa Regra, o indivíduo é uma criatura defeituosa, munido dela, torna-se alguém comprometido com um processo restaurador. E a restauração do ser humano passa forçosamente pela reorganização das virtudes dadas por Deus. As más escolhas, que nos desviam do Criador porque correspondem a atos de desobediência, apresentam-se como uma consequência do caos estabelecido na alma. Quando nós sabemos esperar, meditar, desfrutar, adorar e amar corretamente, tudo fazemos honrando a Deus. Em contrapartida, ao deixarmos que as virtudes se desorganizem, esperamos o que não se cumpre, meditamos o que não tem profundidade nem consistência, desfrutamos o que não convém, adoramos o que é inferior e amamos de modo passageiro. Há um desconserto em nós, e, desse modo, afastamo-nos da realização de nosso potencial.

Para muitos, hoje em dia, valer-se de uma concepção negativa do status humano decerto parecerá algo desagradável. Como disse anteriormente, existe uma forma de ditadura ideológica no âmbito intelectual cujo objetivo é impor proibições, e entre essas proibições encontra-se o intento de coibir a utilização corrente de conceitos como pecado, inferno e perdição. Ganhando contornos teológicos mais específicos, essa tendência afirma que tais conceitos integram um modelo antiquado e reacionário que precisa ser superado por outro modelo de características modernas e supostamente iluminadas. Seria urgente, dessa forma, realçar o que existe de bom na criatura, atirando luzes sobre sua dignidade, sem renegá-la a uma posição de decadência. Existe uma realidade nessa afirmação: de fato, o homem carrega em si mesmo a dignidade da gênese divina, e isso justifica plenamente a imolação salvífica de Jesus Cristo. O ser humano é valioso, e Deus à morte entregou-se para redimi-lo. Trata-se de uma conclusão inegável sobre a qual se assenta o cristianismo. Postular esse dado como uma verdade fundamental da fé tem caráter imprescindível, entretanto, devemos ser cuidadosos para que a constatação não camufle os malefícios causados pelo pecado em uma estrutura que é boa em princípio. A dignidade da criatura não está excluída de uma análise antropológica da Regra. Aliás, isso é parte preponderante de sua motivação. Se Bento de Núrsia começa o compêndio desvelando a situação de desobediência do ser humano não é porque lhe agrade apresentar uma imagem decaída. Seu propósito está alicerçado na esperança de recuperar e preservar a natureza digna do homem, e partindo do pressuposto de que ela foi conspurcada pela maldade, oferece-nos a Regra como uma espécie de direcionamento para regressarmos à via direita.

Não existe incompatibilidade entre a percepção do estado de decadência do ser humano e o fato positivo da redenção porque, no contexto teológico, essas duas situações reúnem-se em uma única estrutura. Mostra-o muito bem a sequência dos livros que compõem a Bíblia: após ter sido criada por Deus, a humanidade perverte-se, e necessita ser reeducada pela atuação de patriarcas, profetas e sábios doutores, até o advento do Cristo Salvador. Mesmo a morte e a ressurreição de Jesus que, arcando com o preço do pecado, abriu novamente as portas do Céu, vieram acompanhadas pela prática pedagógica do Filho de Deus. Nos anos de vida pública, Jesus se empenhou em corrigir e ensinar aqueles que, por Ele, tinham sido chamados. O Sermão da Montanha sintetiza com primor essa característica de Sua missão. Sem o sacrifício na cruz, a obediência sincera aos mandamentos não seria suficiente, mas o sacrifício desprovido dessa mesma obediência também não basta: convém submeter-se à pedagogia de Jesus Cristo se aquilo que se deseja é conquistar a vida eterna. Toda experiência monástica – não só a beneditina – busca constituir um caminho delimitado de seguimento a este ensino. Há muitas regras, e todas elas são expressões formais da fidelidade à pedagogia cristã dentro de um estado de vida específico. Dizer pedagogia beneditina significa dizer, então, vivência dos mandamentos cristãos a partir da compilação feita por São Bento, e embora ele fosse um monge exemplar, Aquele a quem precisamos escutar é, sobretudo, Deus.




[1] Stark, Rodney: A Vitória da RazãoComo o Cristianismo Gerou a Liberdade, os Direitos do Homem, o Capitalismo e o Sucesso do Ocidente, 2007, Lisboa, Tribuna da História.
[2] Segundo o Prólogo da Regra de São Bento, os monges “são aqueles que, temendo o Senhor, não se tornam orgulhosos por causa de sua boa observância, mas, julgando que mesmo as coisas boas não podem ser obra sua, mas foram feitas pelo Senhor, glorificam Aquele que neles opera, dizendo com o profeta: Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome dai glória”.
[3] Mateus 8: 20: E Jesus lhe disse: “As raposas têm tocas e os pássaros do céu, ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça”.

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