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domingo, 12 de outubro de 2014

PEDAGOGIA BENEDITINA: VOCACIONADOS À CARIDADE


                       
                                              5. VOCACIONADOS À CARIDADE




Por amor, Deus convoca-nos a segui-lo e efetua nosso resgate. Se acumulássemos diante Dele nossas qualidades, sacrifícios, atos de fé, todas as obras de caridade, enfim, e não nos confiássemos, em tudo, à superioridade do amor de Deus, como diz São Paulo (1 Cor 13, 13), certamente nós não reuniríamos méritos suficientes para receber a santidade. O mérito supremo de ser amados por Deus e retribuir esse amor é concedido gratuitamente, e nunca usurpado através da força. Maria Santíssima é, entre todas as criaturas, aquela a quem Deus devotou, desde a eternidade, maior predileção e amor, contudo, sua pureza original e, consequentemente, sua concepção sem a mácula do pecado não consistiam em graças passíveis de ser conquistadas. Pelo contrário, eram dons gratuitos ofertados a ela devido aos méritos antecipados de seu filho Jesus[1]. São João Apóstolo afirma: Pois Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha vida eterna (João 3, 16). Portanto, a maior manifestação de amor divino reside nessa entrega, e humanamente isto não pode ser pago. Todas as boas obras realizadas por nós têm relevância, no entanto, nunca equivaleriam à suprema doação divina. Talvez seja tarefa desafiadora entender a dinâmica da gratuidade. Somos educados em um contexto social construído sobre as bases do valor material das coisas, e temos a necessidade de labutar arduamente se o que desejamos é fornecer o sustento ao corpo. Grande ironia! Deus não nos facilita a obtenção daqueles bens exigidos à conservação da saúde física, mas o dom espiritual, a vida eterna, a dádiva mais preciosa de todas, Deus nos garante através da gratuidade de sua entrega generosa. 


A existência de Deus não depende de absolutamente nada, nem sequer da humanidade. Ele é o Eu sou (Êx 13, 14), o incriado, o que não possui princípio nem fim, o imutável, Aquele que não pode ser perfeitamente nomeado, e que ultrapassa qualquer forma de conceituação. Entre o Pai e o Filho desenvolve-se, através da união substancial com o Espírito Santo, uma relação amorosa de altitude celestial que, em si mesma, de nada depende. Quanto a nós, meras criaturas, em tudo dependemos de Deus. Foi Ele quem nos ofereceu a vida, e é Ele quem a preserva, tanto física quanto espiritualmente. Existimos Nele, e fora Dele nada seríamos. Portanto, necessitamos essencialmente de Deus: de sua criação, de seus cuidados e de sua redenção. Pode-se aqui, de modo imprudente, incorrer no equívoco de supor que, motivado pela sua autossuficiência, Deus tenha atitude indiferente a nosso respeito. Se Ele existe independente da criação – e isto é fato! –, por que se ocuparia tanto? Caso tencionemos penetrar o mistério das razões do Senhor, nós precisamos entender que essa distinção ontológica primordial não é definitiva, porque existe a possibilidade da participação humana no âmbito do relacionamento divino; sendo assim, podemos supor em Deus, consequentemente, o desejo de abarcar, em si mesmo, todas as criaturas, não como se fôssemos supérfluos, e sim como algo fundamental. Decerto não imaginaria que Deus se empenhasse em qualquer tarefa indigna. Sua entrega completa e, por conseguinte, a salvação da humanidade, é um gesto de máxima importância também para Ele. 


No evangelho de São João, Cristo anuncia aos apóstolos: Vós dois deuses (João 10, 34). Seus ensinamentos, toda a revelação que se manifesta na Palavra, têm graus de profundidade, e exigência maior ou menor de compreensão. Quando Ele afirma: Se queres ser perfeito, vai, vende o que possui e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me (Mt. 19, 21), coloca explicitamente aquilo que era difícil de ser executado, embora fosse passível de ser compreendido tanto pela mentalidade judaica de então, quanto pelas pessoas de boa vontade dos tempos atuais. Porém, ao expressar-se daquela maneira anterior, ou seja, atribuindo aos apóstolos – e necessariamente a todos os cristãos – a condição divina, Jesus Cristo estabelece uma verdade misteriosa. Pois se nós carregamos a finitude própria das criaturas, se temos inconsistências, falhas, e dependemos integralmente de Deus para ter existência, como será possível usufruirmos de um título honorífico condizente apenas à Santíssima Trindade? Teria Cristo utilizado simplesmente uma linguagem metafórica? Mesmo quando o Filho de Deus usava o expediente das parábolas, referia-se a uma verdade de fundamento inegável. Seu argumento, ornado de um estilo literário característico da época, não estava edificado sobre o vazio. Não era ficção. De modo semelhante, quando Ele padeceu a angústia no horto de Getsêmani, e sentiu seus músculos sendo dilacerados durante os castigos infligidos pelos torturadores, e lamentou o abandono de Seu Pai, em instante algum estava interpretando um papel meramente protocolar. Tudo em Nosso Senhor sempre foi e continuará sendo real. E a constatação dessa realidade é o que nos garante a consistência veraz da declaração mencionada: vós sois deuses!


Pouco antes de ser preso, ofendido, agredido e crucificado, Jesus desejou ardentemente cear a Páscoa com os seus, e, durante a ceia, transubstanciou o pão e o vinho em Sua carne e sangue, a todos os discípulos permitindo – e a nós também – participar totalmente das naturezas humana e divina (Mt 26, 26-29). Ele franqueou entrada à Sua intimidade, não como quem recebe o que é estranho, mas sim como recolhendo, ao aprisco, as ovelhas que o Pai lhe deu, e, dessa forma, pertencem-lhe (Jo 6, 39). Deus nos conhecia antes mesmos de sermos concebidos porque Sua onisciência tudo contém, e transcende as fronteiras do espaço e do tempo, e quando ainda não existíamos no mundo, em condição humana, havia Nele o pensamento relativo à criação, a cada partícula específica, e se tudo estava em Deus, absolutamente tudo era amado por Deus, pois nada daquilo que compartilha o estado divino permanece fora do seu amor. Por esse motivo, Ele não mediu e não mede esforços para que o ser humano cumpra a tarefa de se deificar. A deificação não é um elemento extrínseco ao destino da humanidade, não é uma casualidade, ou o desfecho apoteótico reservado a uns poucos. Originalmente, o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, e tinha, potencialmente, a chance de atingir a plenitude dessa comunhão. Por conta do pecado, essa possibilidade acabou comprometida, e foi necessário o sacrifício do próprio Deus para remediar essa situação. Todos agora somos novamente chamados a entrar na dinâmica do relacionamento divino através de uma entrega caridosa e semelhante; cabe-nos unicamente realizar, em nós, o esforço que ainda resta a cumprir. 


Diante da grandiosidade desse amor, tendo constatado quão responsáveis tornamo-nos também – ou seja, nós somos aquilo que motiva o sacrifício divino –, e admitindo a possibilidade de sermos contados entre aqueles que receberão o sinal da divindade, a marca celeste, ocorre-nos, às vezes, recuar atemorizados, acreditando que a carga terrível da fraqueza, em nós, seja demasiada, malogrando a completa realização do plano divino. Parecemos ter uma consistência débil para suportar o estado permanente de santidade ao qual fomos destinados. Por ser imutável, eterno e imaterial, Deus não se encontra sujeito a altos e baixos. No Senhor tudo é constância e perfeição, e aqueles que se deificam Nele, adquirem semelhantes perfeição e constância. Porém, considerando o estado vigente da criatura, constatamos a distância que nos separa dessa perfeição. O pecado desperta-nos vergonha, e embora isto seja salutar, em princípio, precisamos equilibrar a visão dessa realidade com o apoio da misericórdia. Eu vos digo que do mesmo modo haverá mais alegria no céu por um só pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento, escreve o evangelista Lucas (Lc, 15, 7).  A circunstância do pecado não nos deve paralisar, antes, é proveitoso aprendermos a repousar no perdão do Senhor. Quando a constatação de nossas misérias nos endurece, e colocamo-nos em posição de recuo, esquecemos que o amor de Deus exacerba-se precisamente nessa pequenez da criatura. Por isso, Cristo diz: Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício. Com efeito, eu não vim chamar justos, mas pecadores (Mt 9, 13).  
    

Tamanho é o desvelo do Pai, tamanha é a caridade dedicada às criaturas, que em sua incomensurável bondade dá-nos como graça consoladora a santíssima Virgem Maria. Excetuando as dádivas da criação material e da existência espiritual, eis aqui o maior presente recebido do Céu. Maria incorpora intrepidamente a missão a ela atribuída: ser o colo materno de todos os homens, acrescentando à redenção de Cristo Jesus os frutos benfazejos de seu sofrimento. Recentemente, além de sempre interceder por todos nós – homens e mulheres – a santa Mãe de Deus tem-se apresentado, de maneira recorrente, trazendo mensagens reveladoras que dizem respeito ao destino de toda a humanidade. Isto sucedeu em La Sallete, Lourdes, Fátima, Garabandal, etc., provando, de uma forma claríssima, que ao Senhor Lhe importa, sem dúvida alguma, readquirir as criaturas, não poupando nem sequer os esforços de Maria. Caso decidamos nos aprofundar ainda mais nos mistérios da caridade e da misericórdia divinas, compreendemo-nos cercados pela proteção dos anjos e acompanhados pela comunhão dos santos. Tudo bem disposto para a maior glória de Deus e para a nossa salvação. Sempre que o adversário ruge ao redor, devemos encontrar proteção nisso tudo que o Senhor concede-nos. Quando assim agimos, agimos movidos pela vera prudência.
 

[1] Père Réginald Garrigou-Lagrange: La Mère du Sauveur et Notre Vie Intérieure, Les Éditions du Cerf – Paris – 1948.

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