Genésio e Agostinho encontram-se no vão livre do MASP, em uma tarde tranquila de domingo. Há anos se conhecem, e costumam dialogar a respeito dos mais variados assuntos. Genésio é livre docente em uma universidade federal, enquanto Agostinho trabalha na iniciativa privada, e estuda filosofia como autodidata.
– Caro Agostinho! Que ótimo encontrá-lo neste espaço democrático. Tenho sempre a impressão de que posso entabular diálogos muito proveitosos com você.
– Penso o mesmo, caro Genésio!
– E não haveria outro ambiente mais adequado para tratar do tema importante que anda me preocupando. Me refiro naturalmente ao fato de estarmos debaixo do Museu de Arte de São Paulo: um território onde reina a liberdade artística e de pensamento.
– Me diga, então, Genésio, que tema importante é esse que anda preocupando você?
– Recentemente certos grupos conservadores da nossa sociedade atacaram e pretenderam interromper uma exposição de arte patrocinada por um banco internacional. Além disso, acusaram uma expressão artística de fazer a apologia do crime de pedofilia. Penso que você tenha acompanhado a celeuma, não é mesmo?
– De fato, eu acompanhei.
– O que me preocupa a respeito desse assunto são os avanços assustadores de setores tradicionalistas da nossa sociedade. Hoje censuram uma exposição artística, amanhã certamente hão de implantar uma ditadura conservadora no Brasil.
– Me esclareça algo, caro Genésio, no caso referido esses grupos conservadores acusavam especificamente a exposição patrocinada pelo banco de ofender a religião, além de apresentar conteúdos eróticos a crianças, estou certo?
– Foram especificamente as acusações.
– Pelo que eu soube, havia obras que mostravam Jesus Cristo em situações que os cristãos não consideram respeitosas e obras que sugeriam comportamentos homossexuais de crianças, não é mesmo?
– Sim. Mas é preciso entender que o artista deve ter a liberdade de abordar qualquer assunto, sem que existam restrições externas. Não é aceitável a existência de censura.
– Logo, você defende que a liberdade artística necessita ser absoluta.
– Sem dúvida.
– Para que eu possa compreender melhor o seu ponto de vista, caro Genésio, você poderia definir o que entende por liberdade?
– Claro que posso! A liberdade consiste precisamente em não se encontrar oprimido pelos poderosos da sociedade.
– E você acredita que esses grupos conservadores representam os poderosos da sociedade?
– Não poderia definir melhor.
– Pois bem, caro Genésio. Me permita analisar esse caso em particular utilizando a definição de liberdade que você me ofereceu. Se os grupos conservadores representam os poderosos e opressores, logo os artistas supostamente censurados encontram-se no papel de oprimidos, é certo?
– Até aí, concordo.
– Mas, nesta circunstância, terei que perguntar: na relação entre oprimido e opressor quem é que ofende e quem é ofendido?
– O opressor ofende e o oprimido é ofendido.
– Penso exatamente como você, Genésio. No entanto, nessa situação peculiar, me parece que os setores conservadores da nossa sociedade é que se sentiram ofendidos com as obras expostas. Isto estabelece um dilema, concorda? Se quem ofende é o opressor e quem é ofendido é o oprimido, significa que os artistas são opressores e os grupos conservadores são oprimidos. O que você me diz a respeito dessa conclusão?
– Ela me parece o contrário daquilo que eu penso.
– Por quê?
– Porque os artistas dessa exposição representavam setores desfavorecidos da nossa sociedade, ou seja, as minorias perseguidas, enquanto os conservadores aliam-se aos setores poderosos, às elites financeiras da nação.
– Neste caso, Genésio, você insiste em afirmar que os artistas são oprimidos e os grupos conservadores são opressores, ainda que os conservadores se sintam ofendidos com aspectos relativos às obras apresentadas?
– Sim.
– E isso não lhe parece uma contradição?
– Talvez aparentemente, mas o discurso dos movimentos sociais é unânime ao apontar o conservadorismo como a classe opressora da sociedade.
– Se você insiste nisso, acredito que seja necessário analisar mais profundamente a questão a fim de dirimir todas as dúvidas.
– Eu não me oponho – diz Genésio.
– Sigamos então. Suponho que, se a relação entre ofensor e ofendido, somente isso, não se mostra suficiente para determinar com clareza os respectivos papéis de opressor e oprimido, então será importante aqui determinar mais adequadamente o que seja um e outro a fim melhor identificarmos cada qual nessa história. Por exemplo, momentos antes, caríssimo Genésio, creio ter escutado você afirmar que os conservadores aliam-se aos setores poderosos, às elites financeiras.
– Exato.
– E considera ser essa uma das características que determina os opressores?
– Sem dúvida. Você e eu sabemos perfeitamente que as classes dominantes são abastadas, e exercem autoridade nas relações sociais, utilizando-se desse poder financeiro a fim de constantemente oprimir as minorias.
– Neste caso, seria correto asseverar que os opressores costumam ter recursos pecuniários, enquanto os oprimidos encontram-se desprovidos desse expediente.
– De acordo.
– Pois bem, caro Genésio, deixe-me apontar nessa circunstância específica um fato que exige ser levado em consideração: a exposição mencionada contou com o patrocínio de uma instituição financeira internacional. Isso você e eu não ignoramos. Trata-se de um banco, e segundo consta, houve também dinheiro oriundo de um financiamento estatal. Logo, deduzo que os artistas e os movimentos sociais que eles representam encontram-se amparados tanto pelo capitalismo internacional quanto pelas verbas públicas. Ora, por outro lado, os grupos ditos conservadores que se manifestaram contrariamente à exposição não apresentam qualquer patrocínio de instituições financeiras, nem tampouco gozam de financiamento público. Pelo que me consta, sua tática de manifestação se resumiu única e exclusivamente em suscitar um clamor espontâneo em sites de relacionamentos na internet. Sendo assim, ao utilizarmos os preceitos definidos acima, ou seja, a constatação de que os opressores costumam ter recursos pecuniários, enquanto os oprimidos carecem desse expediente, serei obrigado a concluir novamente que os artistas e seus movimentos sociais denotam exercer o papel de grupos opressores, ao passo que os setores conservadores exercem o papel de oprimidos. De fato, como se observa, enquanto um dos lados acha-se amparado pelo capital estrangeiro e pelas verbas públicas, o outro conta somente com seus recursos pessoais.
– Devo reafirmar que essa conclusão consiste exatamente no contrário daquilo que estou habituado a pensar.
– Então você ainda não está disposto a admitir que, analisando objetivamente esse caso, os artistas e os movimentos sociais por eles representados revelam as características essenciais da classe opressora, enquanto os conservadores demonstram as características comuns dos oprimidos?
– Não sei se estaria disposto.
– No entanto, acredito que nós dois estávamos de acordo que os poderosos usufruem de recursos econômicos, ao passo que os oprimidos disso carecem. Lembra-se como chegamos a essa definição? Havíamos constatado inicialmente que na relação entre opressores e oprimidos, os primeiros ofendem, enquanto os demais são ofendidos. Partindo desse pressuposto básico, mostrei a você que os artistas haviam ofendido os conservadores, estabelecendo, assim, o paradigma tradicional de relação entre quem oprime e quem é oprimido. No entanto, como você não se convenceu com essa caracterização primeira, admiti que poderíamos esquadrinhar mais a questão no intuito de determinar com maior clareza a posição verdadeira de ambos os setores da sociedade. Ora, ocorre que continuando a mesma investigação, nós dois constatamos que no quesito seguinte – a saber, a condição financeira distinta da classe opressora e da classe oprimida –, um dos lados encontra-se protegido pelos recursos pecuniários do capital estrangeiro e governamental, em contrapartida, o outro grupo distingue-se por não ter senão os seus recursos individuais. Portanto, tanto na primeira fase da análise quanto na subsequente, os respectivos partidos mantiveram-se em idêntica posição no que tange a delinear opressores e oprimidos.
– Seu argumento me causa estupefação.
– Sugiro, entretanto, que continuemos esquadrinhando a questão nesse sentido a fim de que não restem dúvidas. Creio que, até o momento, temos utilizado frequentemente uma específica designação relacionada à classe opressora da sociedade com o objetivo de defini-la. Nós a temos chamado classe poderosa. Caro Genésio, você seria capaz de precisar o real significado do termo poder?
– Penso que o poder se constitua em uma série de privilégios que determinados indivíduos conquistam a fim de exercer controle sobre os meios sociais e, consequentemente, sobre a população desfavorecida.
– E esses privilégios são de que natureza?
– Sobretudo política e financeira.
– Acredito que sua exposição não esteja incorreta, Genésio. Agora tratemos de aplicá-la ao caso específico dessa exposição que causou tanta celeuma, assim talvez possamos chegar, finalmente, a uma conclusão a respeito das partes integrantes.
– Façamos isso, Agostinho.
– Sempre que eu reflito acerca de privilégios políticos e financeiros busco elaborar situações bastante práticas com o intuito de compreender como esses privilégios favorecem determinados setores. Por exemplo, quando indivíduos que representam uma classe particular tencionam implantar politicamente seus projetos, e gozam de privilégios políticos, costumam fazer uso disso com o objetivo de atingir sua finalidade. Você concorda, Genésio?
– Concordo.
– Pois bem. Sabemos que esses artistas se vinculam a movimentos sociais, e que suas obras expressavam conceitos artísticos e ideológicos peculiares. No tocante aos trabalhos que apresentavam Jesus Cristo em situação ofensiva para os cristãos, quais seriam exatamente os conceitos artísticos e ideológicos?
– A crítica ao dogmatismo religioso e ao preconceito moralista dos cristãos.
– E essas críticas a uma religião específica visam a que finalidade exatamente?
– Creio que a intenção se resuma a efetuar uma mudança de caráter social. Temos uma sociedade tradicionalista, e a ideia é construir um ambiente mais liberal.
– Mas essa mudança a que você se refere decerto não ocorrerá sem a influência de um poder qualquer, não é verdade?
– Sim, é verdade.
– E de onde provém esse poder?
– Todo poder emana do povo.
– Partindo desse pressuposto, Genésio, chegaremos a uma situação novamente conflitante. Pois segundo entendo, sua definição de poder afiançou que os poderosos são aqueles que usam de privilégios com o objetivo de exercer controle sobre os meios sociais e, consequentemente, também sobre a população. Logo, a população encontra-se em uma circunstância submissa. Então, nesse caso, como afirma agora que todo o poder emana do povo?
– Mantenho o que disse anteriormente, Agostinho, mas acrescento, entretanto, que à população resta o direito de insurgir-se contra a classe poderosa.
– De modo que essa insurreição corresponde a uma forma de poder, estou certo?
– Isso mesmo.
– Sua lógica dá a impressão de fazer sentido, Genésio, contudo, identifico nela uma fraqueza, e é sobre essa fraqueza que pretendo tratar agora. Se a população deve insurgir-se contra os setores poderosos da sociedade, e se como você mesmo definiu, os setores poderosos têm privilégios econômicos e políticos, não seria nada compreensível que o grupo oprimido contasse com o respaldo financeiro de uma instituição internacional e as facilidades do financiamento estatal enquanto o setor chamado opressor nada tivesse em contrapartida. Isso significaria afirmar necessariamente que os privilégios econômicos e políticos se encontram vinculados aos movimentos sociais. No entanto, neste caso, deveríamos atribuir a estes a alcunha de poderosos.
– Outra vez você me surpreende, Agostinho.
– Digo ainda mais. Se esses movimentos sociais representados pelos artistas gozam de privilégios e movimentam o seu poder contra os conservadores, disso se conclui que aqui se estabelece evidentemente a dinâmica da relação entre opressor e oprimido. Sendo que os artistas da exposição se revelam opressores e os conservadores se demonstram oprimidos.
– Seus argumentos são convincentes, Agostinho, mas estão em contraponto ao discurso ideológico no qual sempre acreditei.
– Isso não demonstra então que existem equívocos profundos no discurso?
– É possível.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).
Gostaria de ouví-lo falar caro Gabriel,acrescentando ao diálogo ..sobre:.uma exposição de arte deve apresentar obras de arte...e se tem que ter um critério para se avaliar o valor destas obras....qualquer coisa é arte? Obrigada,Gabriel Santamaria Parabéns pelo texto...Abraços.
ResponderExcluir