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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

PEDAGOGIA BENEDITINA: A SABEDORIA DE SÃO BENTO


      

                                          4. A SABEDORIA DE SÃO BENTO



É muito importante que o monge não esqueça a consistência pedagógica de sua vocação, e eu recordo isso – e provavelmente recordarei outras vezes até o termo deste trabalho – porque a rotina monástica tende a apresentar alguns perigos como, por exemplo, transviar a alma do caminho que conduz ao Bem verdadeiro, ou seja, amar a Deus, ou – o que é tão perigoso quanto – envolver o indivíduo numa espécie de indolência espiritual. Tudo aquilo que compõe a existência em um mosteiro tem seu grau de relevância: a liturgia, o estudo, o trabalho, a assistência aos pobres, etc; mas o grau superior consiste, na realidade, em unir-se integralmente a Jesus Cristo no cumprimento dessas obrigações. Por Jesus é que ali estamos. As obrigações possuem realmente um bom fundamento, e talvez por esse motivo os irmãos dedicados à vida monástica necessitam ter extremo cuidado para que essas não substituam ou se sobreponham ao amor oferecido a Cristo. Jesus precisa ser o objetivo último da estrada, no entanto, sempre existe o risco de apegar-se a bens de nível inferior, desviando-se do real caminho. Se o hábito edifica o monge, é bem verdade também que uma existência habitual, quando não unida à atenção dada constantemente aos exercícios espirituais e à caridade, transforma-se em algo modorrento. Perde-se, assim, o contato com a seiva vital, e tudo passa a ser tão-somente o cumprimento externo da rotina obrigatória. Contra os perigos ora referidos, devemos buscar insistentemente o método pedagógico. Todo aquele que admite a condição humana do pecado, ou seja, a desestruturação das virtudes, colocando-se a si mesmo na condição de discípulo, empreende uma peregrinação espiritual em que o desânimo não prevalece e a meta é necessariamente alcançar a Deus. 


Contudo, observando de uma perspectiva puramente natural, é impossível ao ser humano contemplar a degradação moral ocasionada pelo pecado. Toda filosofia não se mostra suficiente para isto revelar, embora o conhecimento filosófico seja útil de algum modo. Unido à revelação, o programa filosófico torna-se instrumento salutar, sem tal união, porém, confunde mais do que explica. Portanto, temos à nossa disposição tudo aquilo que foi revelado por Deus, e ora compõe a herança judaico-cristã, assim como temos, de forma semelhante, o contato particular com o Espírito Santo – conforme dito no capítulo anterior – que se manifesta principalmente através da oração, descobrindo a realidade das misérias humanas. Para conquistar a sabedoria a respeito do que nós somos e do que Deus é[1] – e consequentemente da distância que Dele nos separa – necessitamos daquele dom primordial do Espírito Santo: o temor de Deus. Nas Sagradas Escrituras aprendemos: O temor do Senhor é princípio de conhecimento, os estultos desprezam sabedoria e disciplina (Pr. 1, 7). O temor aludido resulta não apenas da constatação de que Deus é grandioso, princípio e termo de todas as coisas, cuja vontade soberana pode elevar os humildes e derrubar os soberbos, mas necessariamente também do reconhecimento da insignificância e precariedade da nossa condição humana. Somos dependentes da misericórdia divina, e antes de avançar mais profundamente no caminho da santidade, devemos contar com essa certeza. Sem dúvida, isso nos causa um imediato estremecimento. São Bento de Núrsia não ignora a exigência, e por esse motivo insiste na prática da humildade; além disso, no Prólogo, convoca-nos a ouvir o Espírito da seguinte maneira:


“Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às igrejas”. E que diz? – “Vinde, meus filhos, ouvi-me, eu vos ensinarei o temor do Senhor…” 


Há inúmeros indícios claros que nos asseguram ser a regra dos beneditinos não uma estrada que se desenvolve paralelamente ao Evangelho, conduzindo o indivíduo a Deus através de um estilo de espiritualidade peculiar e diverso do habitual, porém sim a essência própria do cristianismo em estado puro, tudo organizado de forma a simplificar a existência dos cristãos. Quando São Bento estabelece o temor como o princípio da sabedoria, deposita todo o ensinamento bíblico no centro do programa de santidade por ele concebido. São Tomás de Aquino define o homem sábio do seguinte modo: O nome de sábio está reservado apenas àquele cuja consideração versa sobre o fim de todas as coisas.[2] Ora, o fim de todas as coisas é Deus e, para a Ele retornar, São Bento firma-se na sabedoria, apontando a todos nós seu ponto de partida: o temor do Senhor. Por isso, sempre que nós nos referirmos ao criador da Regra, tenhamos consciência de não se tratar somente de um homem santo: Bento de Núrsia foi, de maneira semelhante, um homem sábio. Criou o mais eficiente modelo de vida monástica, reunindo, de modo condensado, preceitos das Sagradas Escrituras e diversos esboços de regras cenobíticas existentes até o momento, dando a tudo isto uma característica bastante própria, e deitando influência de tal dimensão a determinar não apenas o desenvolvimento das ordens monásticas, mas principalmente a estruturação da sociedade cristã. Sem exigir esforços demasiados do monge, segundo Bento mesmo afirma[3], soube conduzir almas a Jesus Cristo com inegável competência. 


Sobre o temor de Senhor como primeiro passo em direção à sabedoria, eis o que diz Eclesiástico:


O temor do Senhor é glória e honra,

alegria e coroa de exultação.

O temor do Senhor alegra o coração,

dá contentamento, alegria e vida longa.

O temor do Senhor é dom que vem do Senhor,

com efeito, ele o estabeleceu sobre os caminhos do amor.

Para o que teme o Senhor tudo terminará bem,

do dia de sua morte será abençoado.

O princípio da sabedoria é temer o Senhor,

e para os fiéis, ela foi criada com eles no seio.

Entre os homens, ela faz um ninho, fundação eterna,

e com a sua raça ela vive fielmente.

A plenitude da sabedoria é temer o Senhor,

ela os inebria com os seus frutos;

ela enche toda a sua casa de coisas desejáveis

e os celeiros com seus produtos.

A coroa da sabedoria é o temor do Senhor,

ela faz florescer o bem-estar e a saúde.

Ambos são dons de deus, em vista do bem-estar

e para aqueles que o amam a firmeza o alarga.

Ele fez chover a ciência e a inteligência

exaltou a glória daqueles que a possuem.

A raiz da sabedoria é temer ao Senhor,

os seus ramos são uma vida longa.

O temor do Senhor tira os pecados,

aquele que persevera desvia toda a cólera.


Com urgência, temos que nos desprender do receio de tomar consciência de nossas próprias imperfeições – admitindo, assim, a condição pecadora que nos cabe –, supondo que esse ato nos induz a algum tipo de existência religiosa de baixa qualidade, em que a alma aprisiona-se dentro de uma ótica pessimista, esquecendo a alegria de estar com Deus. Pois, bem ao contrário, ao adquirir uma visão lúcida sobre nós mesmos, descartamos as ilusões mundanas, ignoramos a soberba de nos acreditar, sozinhos, capazes da salvação, e entramos definitivamente na felicidade da misericórdia divina. O temor é o princípio da sabedoria, de fato, porque nos coloca no coração da realidade: a realidade do ser. Se em nós existem sombras, enganos, terríveis más inclinações, etc., saibamos que Deus possui o poder e o direito de nos condenar, e que, se Ele assim não o faz, se nos perdoa e nos salva é devido à sua bondade e misericórdia sempre dispostas a reconhecer contrições humildes e sinceras. Sem dúvida alguma, o Eclesiástico não se equivoca ao determinar, no trecho acima transcrito, que o temor é glória e honra, alegria e coroa de exultação, contentamento, vida longa… Diz ainda que é um dom que vem do Senhor, e encontra-se estabelecido sobre os caminhos do amor. O sacrifício de Jesus Cristo realiza o milagre de transformar o amargor causado pela morte na doçura da ressurreição e da vida eterna; em consonância, o temor possibilita uma experiência semelhante de sacrifício, fazendo com que a criatura mergulhe na escuridão de suas misérias, e seja ressuscitada pelo coração amoroso de Jesus, conquistando, dessa forma, o direito de saciar-se nas delícias da redenção.    
     

Mesmo ensinando a rota da sabedoria desde o princípio, e se empenhando para que, já no Prólogo, o indivíduo enxergue-se como aquele que se desviou de Deus pela negligência da desobediência, São Bento não se esquece de nos recordar o fim último do homem, e do monge em especial, ou seja, participar pela paciência, dos sofrimentos do Cristo a fim de também merecermos ser co-herdeiros de seu reino. Portanto, existe um estímulo primeiro, e além dele, acrescentaria ainda outros estímulos, trabalhando no sentido de promover a sabedoria e, consequentemente, a salvação humana, e todos esses estímulos têm em Deus sua origem. Ele é o estímulo ou a causa primordial porque criou o homem do nada e, a despeito da queda, escolheu salvar toda a humanidade através do holocausto de Seu Filho, e mostrando-nos a condição vexatória do pecado, caridosamente desvela o caminho de regresso à plenitude do amor. Deus é também estímulo posterior porque, durante nossa peregrinação terrestre, consola-nos com o influxo do Seu Santíssimo Espírito, alimentando-nos, ao mesmo tempo, com a comunhão eucarística. Finalmente, retornar a Ele consiste em nosso verdadeiro objetivo, pois é Seu amplexo divino aquilo que nos atrai. O amor de Cristo precisa ser o motivo integral de nossa existência, e a Ele necessitamos ofertar nosso sentimento do modo como ensina São Bernardo de Claraval: A razão de amar a Deus é Deus mesmo, e a medida desse amor é o amor sem medida[4]. Para implantar o processo pedagógico de maneira eficiente, a Regra e a estrutura da comunidade monástica proporcionam uma circunstância ideal. Teoricamente isolados das tentações do mundo, encontrando a companhia permanente dos irmãos que comungam o mesmo objetivo, e vivendo o privilégio de edificar as atividades rotineiras em torno do Senhor, é de se supor que, no transcorrer da profissão monástica, havendo dedicação e seriedade, enfim o monge beneditino possa tornar-se verdadeiramente santo e verdadeiramente sábio.





[1] Na obra Jesus Cristo, Ideal do Monge, Dom Columba Marmiom resume da seguinte maneira: É dever de cada alma esforçar-se por se conhecer, mediante a luz do alto, procurando descobrir o que é que lhe falta ainda: não pode haver nem uma só, por mais adiantada que esteja, que não encontre nesta oficina o instrumento necessário para completar em si os traços inefáveis do divino modelo.

[2] Suma Contra os Gentios.

[3] Nesta instituição esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado. Mas se aparecer alguma coisa um pouco mais rigososa, ditada por motivo de equidade, para emenda dos vícios ou conservação da caridade não fujas logo, tomado de pavor, do caminho da salvação, que nunca se abre por penoso início (Prólogo da Regra de São Bento).


[4] Saint Bernard: Traité de l’Amour de Dieu, Desclée de Brouwer et Cie – 1936 – Paris.

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