Muitos
anos atrás, visitando um mosteiro trapista, conversei longamente com
o Prior da comunidade. Falávamos especificamente sobre vocação
monástica. Por algum motivo, discutimos a respeito dos riscos de se
entregar à vida cristã, naturalmente considerando que o
cristianismo foi muitas vezes perseguido durante seus mais de dois
mil anos de história. Seguir os passos de Jesus Cristo no Brasil,
como leigo ou monge, não representa exatamente um perigo. Às vezes,
abordamos questões sobre a secularização da sociedade, o avanço
de agendas anticatólicas, tentativas até mesmo de censurar a
exposição pública da fé, mas a verdade é que temos ainda ampla
liberdade religiosa no Brasil. O Prior e eu concordamos que se
entregar à missão cristã em terras brasileiras oferece uma
segurança que nem sempre ocorreu de acompanhar a caminhada dos
seguidores do Filho de Deus. E, não obstante, também levamos em
consideração o fato de que, às vezes, as coisas se transformam
muito radicalmente, e o que antes era segurança logo se muda em
perigo.
Sou
um estudioso de temas relacionados à espiritualidade. Sempre me
interessaram as obras escritas a respeito da vida monástica – em
particular a beneditina – e quanto mais mística a exposição,
mais suscita o meu interesse. Mergulhar de cabeça em uma via
contemplativa exige ter à disposição certa estabilidade que só
encontramos em tempos de paz. Os primeiros monges se direcionavam ao
deserto a fim de escapar da balbúrdia citadina. No deserto
encontravam serenidade, afastando os sentidos das tentações
exteriores, e criando assim o cenário adequado ao encontro com Deus.
Um encontro regado a silêncio e solidão. Sem esse ambiente, os
exercícios espirituais necessários à vida contemplativa
dificilmente chegariam a bom termo. Quando lemos as obras de São
João da Cruz ou de Santa Teresa de Ávila, e acompanhamos os passos
que são descritos no caminho daqueles que se encontram com o Senhor
em oração, urge concluir que, fora de uma situação repleta de paz
e segurança, dificilmente o indivíduo seria capaz de seguir
escrupulosamente os conselhos religiosos desses mestres da vida
espiritual. Não que a santidade deva ser compreendida como algo
unicamente possível em tempos de tranquilidade. Não se trata disso.
Quero tão somente afirmar que o ambiente externo fornece a
circunstância adequada a esse caminho.
Os
que padecem a perseguição – ocorrida em outros tempos e
atualmente também – dão o seu testemunho sacrificando a
existência. Decerto não se pode encontrar facilmente ascensões
místicas ao monte Carmelo ou então excursões às moradas
interiores. Os cristãos que conservam a fé em momentos de perigo
são santos não porque tenham conquistado um conhecimento superior
do caminho espiritual, mas sim porque seguem a Cristo em seu instante
mais radical: o do martírio. E nenhum seguidor de Jesus deve excluir
a possibilidade de ser obrigado a entregar totalmente à vida em
holocausto. Mesmo que o contexto social não seja adverso, o fiel
necessita sempre manter na consciência essa realidade como alguma
coisa manifesta na história da Igreja. Sobre isso exatamente
conversava com aquele Prior do mosteiro trapista: muitos vocacionados
à vida religiosa buscam talvez um destino confortável, entretanto,
nunca devem esquecer que, em última instância, o cristão precisa
estar, inclusive, perfeitamente preparado até para o martírio, o
testemunho definitivo do amor a Deus.
Recordo
a obra O Silêncio, escrita pelo romancista japonês Shusako Endo,
cujo enredo narra as peripécias de dois sacerdotes jesuítas que
deixam terras portuguesas com o intuito de levar o evangelho ao
Japão. Historicamente, os primeiros missionários que se arriscaram
naquela nação do oriente encontraram um campo fecundo para expandir
o cristianismo. Porém, com o advento do shogunato Togukawa, houve
uma mudança significativa: cristãos antes aceitos normalmente,
começaram a ser perseguidos com virulência. O enredo de Shusako
Endo desenrola-se exatamente nesse período. Frente a uma
circunstância adversa, os dois sacerdotes esforçam-se no sentido de
conservar a fé em Cristo a despeito das torturas a que são
submetidos quando capturados. Mas o verdadeiro drama não se encontra
centrado nas dores físicas, e sim no dilema que significa manter a
crença em Jesus Cristo quando o silêncio de Deus é a única
resposta. Vive-se assim, forçosamente, aquela dimensão complexa que
está contida na frase do Filho crucificado: “Pai, por que me
abandonaste?” Nesse estado radical de vivência cristã, toda a
teologia mística demonstra-se inócua. De que servem as moradas
interiores quando tudo ao redor persegue e massacra? Como se sentir
consolado espiritualmente dentro de uma cela gélida de onde é
possível escutar os gritos terríveis dos irmãos sendo dilacerados?
Nesse momento, toda a teologia sucumbe, e só o que resta é a fé
viva, sem argumentos além do desejo de comungar com Cristo também o
martírio. Tudo se resume a isso.
Para
além da mera literatura, atualmente testemunhamos uma perseguição
acirrada a comunidades cristãs no Oriente Médio. Inúmeros
seguidores de Jesus Cristo, irmãos na fé, oferecem o sacrifício
integral de sua existência. No evangelho de Mateus, o Filho de Deus
afirma: Bem-aventurados
os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o
Reino dos Céus.
Ser possuidor de tão alta recompensa é o que de mais excelso o
Senhor concede, e essa concessão ele a conserva exatamente aos que
se defrontam com o martírio. Derramar o sangue em nome de Deus
revela-se, assim, o apogeu da vida espiritual, e ainda que em nosso
ambiente essa atitude não se demonstre necessário, sempre é bom
recordar que os exercícios de espiritualidade – todos eles! –
ainda são inferiores a imitar o Cristo na cruz.
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