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quarta-feira, 18 de abril de 2018

OS SONHOS E SUAS CARACTERÍSTICAS




Hoje a interpretação dos sonhos encontra-se tão arraigada na cultura contemporânea como um elemento pertencente ao desenvolvimento da psicanálise que seria mesmo interessante evocar o fato de que, além das características científicas do método, existem também elementos religiosos. Como médico psiquiatra, Sigmund Freud agia dentro de perspectivas epistemológicas, e ainda que críticos tenham questionado o valor científico da psicanálise, sem dúvida Freud seguiu parâmetros bastante rigorosos. Conquanto atualmente o fato de psicanalistas escrutarem os sonhos dos analisados no intuito de tentar compreender o inconsciente em busca da causa relativa aos problemas mentais e consequentemente da cura necessária pareça uma circunstância corriqueira, ao analisar essas manifestações oníricas, Freud enveredava por caminhos obscuros. Há tempos os seres humanos lidam com tentativas de entender os mecanismos e os significados dos sonhos, e não raramente essas tentativas expressam-se através de oráculos e outras artes divinatórias. Mesmo as mais relevantes tradições religiosas não escaparam do fascínio exercido pelos sonhos. Por exemplo, é possível encontrar na Bíblia menções a sonhos simbólicos que preconizavam acontecimentos e aconselhamentos que favoreciam a solução diante de situações consideradas muito complexas.

Para além das referências religiosas e da teoria psicanalítica acerca do tema, existe o fato da experiência em si mesma. O sonho ocorre na existência dos indivíduos como uma elaboração inconsciente em que se mesclam certa narrativa parcialmente razoável e inúmeros elementos desconexos que muito frequentemente desafiam a compreensão daquele que se dedica a interpretá-lo. Por vezes, relatamos ou testemunhamos relatos de sonhos considerados absurdos. Situações confusas como se encontrar em um determinado ambiente, e no instante seguinte perceber-se subitamente em outro ambiente diverso sem que tenha havido deslocamento, ou então circunstâncias em que certas pessoas se transformam em outra de aparência diferente, ou ainda mesmo se metamorfoseiam em criaturas animalescas, tudo isso acontece no decorrer do fenômeno onírico sem que subsista nele próprio qualquer justificativa. De fato, a participação do absurdo na estrutura dos sonhos dificulta bastante sua decodificação, no entanto, devemos também admitir que essa característica talvez tenha um significado capaz de nos auxiliar no entendimento do mecanismo interno dos sonhos.

De onde provém essa característica do absurdo presente no sonho? Por que o fenômeno onírico não segue o padrão lógico e razoável do discurso consciente? Para a psicanálise, trata-se de uma questão fundamental. Para abordá-la, é necessário compreender que a mente humana costuma manter um estado satisfatório de consciência quando em estado de vigília, mas assim que adormece, essa consciência decai substancialmente, fazendo com que percamos o contato com a realidade desperta. Passamos a viver então experiências não verdadeiras em que recordamos coisas relacionadas à nossa existência ou criamos fantasiosamente situações que se sucedem geralmente sem padrões fixos, e que podem interromper-se de súbito sem que isso represente qualquer perda significativa para o indivíduo. Pode-se sonhar com um acidente – aéreo, automobilístico ou de qualquer outra espécie – sem que existam consequências físicas ao despertar. No sonho, a diminuição do potencial consciente desfavorece a atuação da lógica, das situações racionalmente concatenadas, suscitando o fator do absurdo como elemento constitutivo do fenômeno onírico. De certo modo, podemos afirmar que a razão ou a lógica decorrente desta desenvolve-se mais frequentemente em um movimento linear, baseadas no estado de consciência, no entanto, quando entorpecidas pelo sono, surgem lacunas nesse movimento linear, situação essa que favorece o acontecimento de saltos na narrativa dos sonhos, causando consequentemente a impressão do absurdo.

A tese freudiana de que no sonho manifestam-se desejos reprimidos no inconsciente auxilia na compreensão desse elemento absurdo contido na estrutura onírica. De fato, a repressão dos desejos consiste justamente em retirar do eu consciente aquilo que dá a impressão de ter pouca conveniência – quase sempre sob a influência repressora do superego – e enterrar tudo no inconsciente. Quando o que foi reprimido ressurge no sonho, na maioria das vezes mescla-se a outros elementos – fatos relativos ao cotidiano, recordações do passado, cenas marcantes de filmes ou da literatura, etc. –, tornando mais complexa a interpretação. Se o analista tentasse decifrar o sonho como um todo, ou seja, como uma narrativa linear, decerto teria imensas dificuldades. Por isso, é necessário separar as diversas partes do sonho, analisando cada qual particularmente, assim aplicando aos símbolos ali existentes alguma forma de explicação cabível.

Também é interessante observar que a simbologia e seus significados têm duas vias comuns de interpretação: a primeira consiste em atribuir aos sonhos de todos os indivíduos sentidos de teor universal. Por exemplo, a visão de uma serpente deve ser entendida como representação do falo, a visão de animais selvagens como a força dos instintos, etc. Se a mesma justificativa pode ser utilizada com todos os indivíduos, isso demonstra que existem símbolos culturalmente válidos para todas as pessoas – naturalmente, seria interessante estudar essa questão em particular sob a perspectiva dos arquétipos propostos por Carl G. Jung, contudo, isso exigiria um ensaio específico. A segunda via de interpretação leva em consideração a vida peculiar do indivíduo analisado, interpretando aspectos dos sonhos não como manifestação de símbolos universais, e sim como elaborações vinculadas às experiências pessoais do sujeito. Caso o indivíduo tenha sido atacado por um cão feroz durante a infância, talvez essa situação tenha ocasionado receios que se expressam constantemente em sonhos nos quais se revive a circunstância desagradável. Neste caso, cabe ao psicanalista descobrir a melhor via de interpretação no intuito de oferecer ajuda ao analisado.


Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).


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