" " NOVA CASTÁLIA: O SHEMÁ DA PSICANÁLISE

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sexta-feira, 18 de maio de 2018

O SHEMÁ DA PSICANÁLISE



Tendo a psicanálise surgido como resultado das investigações médicas de um neurologista judeu, eu não estaria enganado se evocasse certo aspecto concernente à história religiosa dos israelitas no intuito de tentar entender a contribuição de seu criador. Mesmo que Sigmund Freud fosse ateu por convicção, ainda assim devemos admitir que determinadas características da tradição de um indivíduo não desaparecem tão facilmente, sobretudo quando nos referimos a uma tradição marcante como a judaica. Isso talvez até ele próprio fosse capaz de concordar, considerando o fato de que escreveu uma análise importante sobre Moisés, e a si mesmo muitas vezes se identificou com esse personagem bíblico. Mas a que vem essa observação? Trata-se de compreender a existência de características religiosas no processo da psicanálise, características essas que foram provavelmente secularizadas pelo labor científico de Freud, e que, no entanto, podem ser identificadas pela investigação atenta de um bom estudioso. Provavelmente, não chegaremos a discernir isso se nos cegarmos por qualquer visão ideológica acerca da psicanálise. Não se tenciona aqui batizar o trabalho intelectual de Freud nas águas sacras da argumentação espiritual, porém sim descobrir as origens mais remotas de aspectos marcantes no processo analítico.

Um desses aspectos consiste na questão da fala ou, melhor dizendo, da cura através da fala. Com o expediente da livre associação, o analisando manifesta-se verbalmente, dando assim a oportunidade ao psicanalista de identificar em seu discurso elementos do inconsciente que se revelam espontaneamente. O que se encontra oculto, ou seja, aquilo que em muitas ocasiões é a origem de transtornos psicológicos, acaba sendo trazido à superfície, dessa maneira oferecendo ao analista a chance de interpretar a personalidade do sujeito. Trata-se de um processo criado por Freud depois de ter buscado acessar as verdades enterradas no inconsciente por meio da hipnoterapia, por exemplo, e de outros métodos que não se mostraram tão eficazes. Na posição de ouvinte, o psicanalista atenta-se aos vestígios da realidade obscura que se camufla sob as palavras, na tentativa de decifrar de modo competente as estruturas psíquicas daquele que ali está submetido à análise. Portanto, estabelece-se uma relação em que duas posições distintas se completam: aquela do indivíduo que fala utilizando-se com isso da livre associação e a outra do psicanalista que escuta fazendo uso dos instrumentos técnicos que possui.

Pode-se relacionar isso com algo da tradição judaica? De uma forma bastante liberal, evoco a conhecida sentença hebraica Shemá Israel, cuja tradução é Ouve, Israel. O ato de ouvir é algo essencial dentro da cultura dos judeus, em princípio no que tange a ouvir as palavras divinas – neste caso, o indivíduo se coloca na posição de escutar passivamente tudo aquilo que Deus lhe diz –, e em segunda instância na transmissão dos ensinamentos que acontece através da oralidade, ou seja, é falando que um judeu transfere ao outro a verdade de sua religião. Usei o termo verdade, e ele se aplica aqui muitíssimo bem, porque para o judaísmo o Senhor representa justamente a verdade, não uma verdade entre muitas, mas sim a verdade única, oriunda de um Deus único. Quando observamos o shema no âmbito da psicanálise, entendemos que o ato de falar, próprio do analisando, transmite também a verdade de seu interior. Essa analogia talvez pareça contraditória se considerarmos que muito frequentemente na história da psicanálise parece ter havido certa indisposição entre suas principais teorias e os ensinamentos das religiões instituídas, no entanto, nem sempre é assim tão necessário colocar psicanálise e religião em conflito. De fato, nas conferências realizadas na Universidade católica de Bruxelas, Jacques Lacan afirma: “... se a psicanálise não triunfar sobre a religião, é porque a religião é inquebrantável. A psicanálise não triunfará: sobreviverá ou não.” E ainda: “Não triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras coisas. É inclusive impossível imaginar quão poderosa é a religião.”

Pois bem, a escuta psicanalítica insere-se nessa dinâmica que conserva laços ancestrais com o judaísmo. Dentro de cada ser humano existe uma situação psíquica que solicita certa via de expressão, e a psicanálise oferece exatamente essa oportunidade, colocando o analista na posição de quem se atenta a tudo o que é falado, com o objetivo de conduzir o analisando à descoberta de si mesmo e, também, ao alívio de seus sofrimentos. Eis que a tradição vetusta do shemá se manifesta, não em uma circunstância essencialmente espiritual, contudo, mantendo ainda elementos relevantes de consistência. É o verdadeiro que se revela, é algo que se transmite de um indivíduo ao outro, sigilosamente, de fato, como se ali existisse um segredo precioso, algo que necessita ser tratado com o devido respeito. Sem dúvida, cabe ao psicanalista tratar esse processo com imenso desvelo, entendendo sempre que tudo aquilo que é dito representa a intimidade de alguém, não raramente uma intimidade dolorosa que só se manifesta no desenrolar da terapia, de forma muito paciente.

O falar é o modus operandi dentro da psicanálise, o caminho rumo ao inconsciente, e a escuta é parte importante da elaboração intelectual do psicanalista.

Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).

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