Por que alguém se torna socialista? Há uma resposta supostamente óbvia: para acabar com as desigualdades sociais e saciar os famintos. Trocando em miúdos, por um impulso de generosidade. Mas se alguém se torna socialista realmente por esse motivo, por que não se tornaria também um benfeitor de características religiosas como, por exemplo, Madre Teresa de Calcutá? Se observarmos bem, o impulso caridoso como fenômeno humano antecede historicamente o surgimento do socialismo, e é um fator mais intenso e marcante nas religiões institucionalizadas. Sem dúvida, não há partido ou regime socialista no mundo inteiro que sustente mais pobres do que as igrejas. Logo, o impulso de generosidade não deve constituir-se em argumento suficiente para justificar o fato de alguém se transformar em socialista. Nesse caso, qual seria, então, o motivo? Talvez a influência exercida deliberadamente sobre os indivíduos. É notório que o socialismo tem um eficiente método de doutrinação, e através dele arregimenta seus prosélitos. Sendo assim, muitos provavelmente acabam sendo apanhados nas redes do socialismo. Se considerarmos que a esquerda conquistou uma espécie de hegemonia cultural na sociedade brasileira após décadas de doutrinação eficiente, surpreende que algumas pessoas não se tenham tornado socialistas desde o berço ou, ao menos, durante a juventude quando estão mais expostos à influência.
Sou uma dessas exceções, admito. Nunca me deixei seduzir pela retórica do socialismo. Durante a adolescência, sendo então um frequentador assíduo de bibliotecas, e tendo-me interessado pelo estudo da filosofia, comecei a buscar os temas que versassem sobre essa temática. Na ocasião, o nome que me surgiu primeiramente foi o de Karl Marx. Costumava ver cartazes de manifestações e simpósios comunistas espalhados pela cidade de São Paulo naquele tempo, e o rosto do ideólogo alemão, em gravuras conhecidas, neles figurava. Sempre houve ao redor do socialismo certa aura de intelectualidade, e um leitor ávido como eu não ignorava esse fato. Por isso busquei ingressar no terreno filosófico abordando, de início, textos marxistas, na esperança de que pudessem construir-me intelectualmente. Tudo o que eu desejava era que a filosofia expandisse meus horizontes, me oferecesse profundidade e, sobretudo, que respondesse as questões essenciais da alma humana. Nisso consistia minha sede de conhecimento, e era o que eu ansiava fruir nas obras de filosofia.
Foi uma abordagem sincera, afinal, eu estava realmente interessado em destrinchar o pensamento marxista. Mas à medida em que avançava na leitura do Manifesto do Partido Comunista, do 18 de Brumário de Luís Bonaparte e das Teses Sobre Feuerbach, por exemplo, notei que nesses escritos decerto não encontrava aquilo que estava buscando. Tive a nítida impressão de que estava habitando um terreno raso e árido. As análises sociais de Karl Marx, cujo intuito consistia em revolucionar o sistema, levando o modelo capitalista a um estado socialista através de um processo dialético não entusiasmava o meu espírito. Além disso, o materialismo histórico do autor, redundando em um ateísmo militante, não chegava a convencer-me. Honestamente, Marx não oferecia qualquer resposta às questões fundamentais da alma humana. Talvez alguém possa objetar que os problemas sociais e econômicos tratados por Karl Marx não me tocavam particularmente, sendo assim, isso explicaria a pouca atração que sua obra exercia sobre minha pessoa. Contudo, a realidade é que sempre estive mais próximo da classe dos proletariados – a qual o autor dirigia seu pensamento. Logo, supostamente deveria encontrar-me suscetível à retórica marxista. Mas o fato é que, em momento algum, isso aconteceu.
Desiludido, abandonei o marxismo e me aventurei por outras estantes da biblioteca. Na ocasião, despertou-me o interesse as obras de um autor especialista em religiões comparadas: Mircea Eliade. Sua análise das crenças religiosas revelou-se de grande fôlego. O autor abordava as mais variadas tradições espirituais, do cristianismo ao islamismo, dos cultos de mistérios da Grécia antiga às várias seitas gnósticas, do hinduísmo às tribos norte-americanas, etc. Com argúcia e uma cultura enciclopédica, Eliade comparava as inúmeras manifestações religiosas do oriente e do ocidente, lançando luzes sobre as origens da experiência sobrenatural no ser humano. Havia alguma coisa de místico naqueles livros, como se ao desvendar as culturas tradicionais, o autor conseguisse traduzir elementos da alma humana, desde os primórdios à modernidade. Porque o homem religioso, no fundo, é intimamente o mesmo, não importa o período histórico. Mesmo que seu estudo não se centralizasse no homem contemporâneo, oferecia instrumentos suficientes para interpretá-lo também.
Havia diferenças substanciais entre os trabalhos de Karl Marx e os de Mircea Eliade. Enquanto os limites do primeiro eram estreitos, os limites do outro mostravam-se abrangentes. Enquanto Marx negava a transcendência, Eliade fazia disso o mote de sua investigação intelectual. Um tencionava romper com as tradições, e o outro supunha preservá-las. Um era horizontal, o outro vertical. Metido entre os dois, inclinei-me seguramente no sentido do estudioso de religiões comparadas. De fato, com muita satisfação, dediquei-me à leitura da maioria dos livros deste autor, e além de compreender melhor o fenômeno religioso, também compreendi melhor a mim mesmo. Estou absolutamente convencido de que, naquele momento, meu destino intelectual foi definido, e eu me desviei da visão superficial e materialista da realidade marxista para vislumbrar uma realidade de características profundas e sobrenaturais.
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