" " NOVA CASTÁLIA: O ELOGIO DA BONDADE

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quarta-feira, 5 de abril de 2017

O ELOGIO DA BONDADE



Há em mim um hábito puramente literário que consiste no seguinte: buscar nas páginas das grandes obras escritas as referências que sirvam de analogia com situações reais ou elucubrações filosóficas. Por exemplo, se acaso me confrontasse com uma circunstância na qual determinado indivíduo, tendo-se aventurado a conhecer um país longínquo, encontrasse uma cultura atrasada e afeita a violências, isto evocaria automaticamente o enredo do livro Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Na mesma linha bibliográfica, veio-me rápido à memória Lord Jim, o personagem marcante do mesmo autor, quando em anos recentes, na Itália, o capitão do navio Costa Concórdia abandonou seu posto de comando durante um acidente, enquanto a nau afundava. O episódio envergonhou a marinha italiana, e o capitão foi severamente punido pela atitude. Para os que leram Lord Jim, o enredo versa exatamente sobre um tripulante que, tendo-se defrontado com a possibilidade de um naufrágio, evade-se do navio como um verdadeiro covarde. Ocorre que o barco não afunda, de fato, e o protagonista – protótipo do anti-herói – passa a carregar, desde o momento, essa mancha vexatória em sua existência posterior.

Buscar referências na literatura é uma forma de tentar compreender melhor a realidade. Antes de nós, grandes escritores procuraram refletir a respeito de temas universais, e com exímio talento transformaram esses temas em leituras peculiares. O amor, a coragem, a morte, o temor, a persistência, a fé, a liberdade, etc., todas as questões fundamentais da humanidade foram transformadas em obras memoráveis. Quando se estabelece correlação entre uma circunstância verídica e seu símile literário, essa experiência encontra o estado de perfeição. Porém, quando a referência literária se torna mais intensa, sobrepujando o real, corre-se o risco de perder o contato com os fatos do cotidiano. Nesse caso, os conceitos adquirem status de importância excessiva, e o indivíduo distancia-se da consistência do real. O amor na literatura é realmente inspirador, no entanto, não se compara com a vivência amorosa na prática. Em situações como as mencionadas acima, ocorre um processo de evasão do mundo palpável rumo ao mundo da fantasia.

Faço essas meditações porque também eu, vivendo imerso na literatura, padeço dessa tendência de idealizar demasiadamente as situações, vivendo assim mais no íntimo das páginas escritas do que no contexto físico da realidade. Ultimamente, refletindo acerca de uma virtude tão necessária quanto a bondade, procurei ao redor as referências palpáveis que a representassem, e lamentei não poder encontrar nenhuma que fosse eloquente como os exemplos característicos contidos na tradição literária. E nisso incluo tanto a tradição religiosa quanto a secular. Penso na figura do patriarca José, administrador do Egito, submetido apenas ao Faraó, que tendo sido rejeitado e agredido pelos próprios irmãos – além de ser vendido como escravo – oferece aos mesmos o perdão movido pelo sentimento de compaixão, e recebe-os generosamente em uma terra de fartura. Recordo-me também de Sônia, a prostituta misericordiosa de Crime e Castigo, obra de Fiódor Dostoievski, que a despeito de sua condição social inferior, serve como oportunidade de redenção para Raskólnikov, o protagonista do enredo. Ambas as referências são literárias, embora no primeiro caso trate-se de um personagem histórico.

Talvez seja demasiado exigente escrutinar o mundo em busca de exemplos semelhantes aos referidos. Mas em termos de virtude, se o que se deseja consiste em testemunhar a sua existência, urge procurá-la na sua maior expressão. O problema todo, no entanto, não reside no caráter sublime das referências, e sim na tábua de valores morais da sociedade contemporânea. Onde encontrar a bondade como virtude primordial no comportamento humano em um mundo no qual o dinheiro conquista mais corações do que qualquer beldade? Nesta sociedade em que o rancor revolucionário costuma ser ensinado a crianças e adolescentes, como descobrir o aroma agradável da generosidade? Estamos soterrados debaixo de materialismo, consumismo, ideologias esfarrapadas, sexualização exacerbada, e em um contexto dessa magnitude, a verdadeira bondade transformou-se em um elemento de segunda ou terceira categoria. Para testemunhar sua suavidade, às vezes revela-se imprescindível evadir-se um pouco da realidade a fim de saciar-se nas águas tradicionais da literatura. Porém, esse é um subterfúgio que tem certos limites, e a alma do ser humano exige a consistência daquilo que pode ser vivenciado.

Por um momento, no entanto, meditando acerca desse assunto, ocorreu-me que provavelmente seria demasiado confortável postar-me somente na posição de espectador. Para que a bondade seja um fato, basta que o indivíduo assuma para si mesmo o propósito de habituar-se à virtude. Mesmo não alcançando a sublimidade das referências mencionadas, o esforço sincero de agir com generosidade terá um valor louvável. Buscar os benesses da bondade nos outros e esquecer que seu princípio como manifestação humana encontra-se na livre decisão do indivíduo significa adequar-se à situação social em que os valores rejeitam esse tipo de virtude. Significa nivelar-se com aquilo que há de mais baixo. Não obstante, quando existe quem se encarregue de ser a referência faltante, o movimento torna-se inverso, e o indivíduo alça-se acima da categoria comum, oferecendo às demais pessoas a suavidade daquilo que anteriormente buscava.

Há nisso certo heroísmo. Tomar em seu encargo a responsabilidade de atuar na contramão da maioria, admitindo ofertar o que seja raro, embora não exista qualquer garantia de receber o mesmo em contrapartida. Porém, acredito também que me pareça a melhor escolha dentre as possíveis. Disso é preciso, sobretudo, fazer um propósito, decidir-se peremptoriamente e seguir adiante. Fazer de si mesmo um centro de bondade, ainda que timidamente no começo, e talvez alumiar o mundo com esse comportamento. 



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