Há
em mim um hábito puramente literário que consiste no seguinte:
buscar nas páginas das grandes obras escritas as referências que
sirvam de analogia com situações reais ou elucubrações
filosóficas. Por exemplo, se acaso me confrontasse com uma
circunstância na qual determinado indivíduo, tendo-se aventurado a
conhecer um país longínquo, encontrasse uma cultura atrasada e
afeita a violências, isto evocaria automaticamente o enredo do livro
Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Na mesma linha bibliográfica,
veio-me rápido à memória Lord Jim, o personagem marcante do mesmo
autor, quando em anos recentes, na Itália, o capitão do navio Costa
Concórdia abandonou seu posto de comando durante um acidente,
enquanto a nau afundava. O episódio envergonhou a marinha italiana,
e o capitão foi severamente punido pela atitude. Para os que leram
Lord Jim, o enredo versa exatamente sobre um tripulante que, tendo-se
defrontado com a possibilidade de um naufrágio, evade-se do navio
como um verdadeiro covarde. Ocorre que o barco não afunda, de fato,
e o protagonista – protótipo do anti-herói – passa a carregar,
desde o momento, essa mancha vexatória em sua existência posterior.
Buscar
referências na literatura é uma forma de tentar compreender melhor
a realidade. Antes de nós, grandes escritores procuraram refletir a
respeito de temas universais, e com exímio talento transformaram
esses temas em leituras peculiares. O amor, a coragem, a morte, o
temor, a persistência, a fé, a liberdade, etc., todas as questões
fundamentais da humanidade foram transformadas em obras memoráveis.
Quando se estabelece correlação entre uma circunstância verídica
e seu símile literário, essa experiência encontra o estado de
perfeição. Porém, quando a referência literária se torna mais
intensa, sobrepujando o real, corre-se o risco de perder o contato
com os fatos do cotidiano. Nesse caso, os conceitos adquirem status
de importância excessiva, e o indivíduo distancia-se da
consistência do real. O amor na literatura é realmente inspirador,
no entanto, não se compara com a vivência amorosa na prática. Em
situações como as mencionadas acima, ocorre um processo de evasão
do mundo palpável rumo ao mundo da fantasia.
Faço
essas meditações porque também eu, vivendo imerso na literatura,
padeço dessa tendência de idealizar demasiadamente as situações,
vivendo assim mais no íntimo das páginas escritas do que no
contexto físico da realidade. Ultimamente, refletindo acerca de uma
virtude tão necessária quanto a bondade, procurei ao redor as
referências palpáveis que a representassem, e lamentei não poder
encontrar nenhuma que fosse eloquente como os exemplos
característicos contidos na tradição literária. E nisso incluo
tanto a tradição religiosa quanto a secular. Penso na figura do
patriarca José, administrador do Egito, submetido apenas ao Faraó,
que tendo sido rejeitado e agredido pelos próprios irmãos – além
de ser vendido como escravo – oferece aos mesmos o perdão movido
pelo sentimento de compaixão, e recebe-os generosamente em uma terra
de fartura. Recordo-me também de Sônia, a prostituta misericordiosa
de Crime e Castigo, obra de Fiódor Dostoievski, que a despeito de
sua condição social inferior, serve como oportunidade de redenção
para Raskólnikov, o protagonista do enredo. Ambas as referências
são literárias, embora no primeiro caso trate-se de um personagem
histórico.
Talvez
seja demasiado exigente escrutinar o mundo em busca de exemplos
semelhantes aos referidos. Mas em termos de virtude, se o que se
deseja consiste em testemunhar a sua existência, urge procurá-la na
sua maior expressão. O problema todo, no entanto, não reside no
caráter sublime das referências, e sim na tábua de valores morais
da sociedade contemporânea. Onde encontrar a bondade como virtude
primordial no comportamento humano em um mundo no qual o dinheiro
conquista mais corações do que qualquer beldade? Nesta sociedade em
que o rancor revolucionário costuma ser ensinado a crianças e
adolescentes, como descobrir o aroma agradável da generosidade?
Estamos soterrados debaixo de materialismo, consumismo, ideologias
esfarrapadas, sexualização exacerbada, e em um contexto dessa
magnitude, a verdadeira bondade transformou-se em um elemento de
segunda ou terceira categoria. Para testemunhar sua suavidade, às
vezes revela-se imprescindível evadir-se um pouco da realidade a fim
de saciar-se nas águas tradicionais da literatura. Porém, esse é
um subterfúgio que tem certos limites, e a alma do ser humano exige
a consistência daquilo que pode ser vivenciado.
Por
um momento, no entanto, meditando acerca desse assunto, ocorreu-me
que provavelmente seria demasiado confortável postar-me somente na
posição de espectador. Para que a bondade seja um fato, basta que o
indivíduo assuma para si mesmo o propósito de habituar-se à
virtude. Mesmo não alcançando a sublimidade das referências
mencionadas, o esforço sincero de agir com generosidade terá um
valor louvável. Buscar os benesses da bondade nos outros e esquecer
que seu princípio como manifestação humana encontra-se na livre
decisão do indivíduo significa adequar-se à situação social em
que os valores rejeitam esse tipo de virtude. Significa nivelar-se
com aquilo que há de mais baixo. Não obstante, quando existe quem
se encarregue de ser a referência faltante, o movimento torna-se
inverso, e o indivíduo alça-se acima da categoria comum, oferecendo
às demais pessoas a suavidade daquilo que anteriormente buscava.
Há
nisso certo heroísmo. Tomar em seu encargo a responsabilidade de
atuar na contramão da maioria, admitindo ofertar o que seja raro,
embora não exista qualquer garantia de receber o mesmo em
contrapartida. Porém, acredito também que me pareça a melhor
escolha dentre as possíveis. Disso é preciso, sobretudo, fazer um
propósito, decidir-se peremptoriamente e seguir adiante. Fazer de si
mesmo um centro de bondade, ainda que timidamente no começo, e
talvez alumiar o mundo com esse comportamento.
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