Os monges
escolhem livremente a solidão: é nesse estado que se encontram com Deus. Os
estrangeiros muito frequentemente também conhecem a solidão. Ser um estranho em
terra distante, cercado por pessoas de língua e cultura diferentes, tentando
decifrar os signos da nova realidade, sentindo a ausência de amigos e
familiares, tudo isso tem correspondência com a solidão. Os amantes abandonados
experimentam a solidão em seu aspecto um tanto obscuro. Pode certamente não ser
a condição mais ambicionada, contudo, não devemos esquecer que muitas obras
artísticas nasceram inspiradas pela figura dos amantes frustrados. Há outra
espécie de indivíduo cujo status encontra-se ligado à imagem do solitário:
trata-se do escritor. Sozinho no estúdio, cercado de livros e silêncio,
escrevendo durante horas a fio, o escritor constitui o protótipo do ser humano
que, utilizando-se de um elemento originalmente adverso – a solidão – consegue
transformar a adversidade em criação artística. Sempre que bem-sucedido, o
autor de livros estabelece um diálogo frutuoso com os leitores, e é curioso que
esse colóquio nasça e se desenvolva exatamente no terreno da solidão, como se
ela se metamorfoseasse no seu contrário, como se fosse necessário construir um
silêncio absoluto a fim de atingir a essência da natureza humana e então
transmiti-la. Da mesma forma, o leitor necessita buscar a solidão se o intuito
for compreender a mensagem transmitida, e isolado, tendo somente a companhia do
livro, torna-se testemunha silente daquele desnudar-se audacioso da alma que
empreende o escritor nas páginas. No espaço da solidão, dois espíritos
distantes entendem-se discretamente.
Gosto da imagem tradicional do
escritor caminhando à beira-mar, em uma tarde fria de outono, o oceano cinza e
encapelado, o ruído da ventania, o homem como uma sombra vagando com aquela
sensação de que acolhido em seus pensamentos está seguro. Talvez esses momentos
sejam mesmo imprescindíveis, sem essa reclusão voluntária as obras
provavelmente ficariam sufocadas, como a semente que encontra terra árida e não
consegue desenvolver-se. A solidão é fecundante muitas vezes. Decerto ele
procura essa situação tentando calar a balbúrdia exterior, afastar os intrusos
do seu território literário, dar espaço ao nascimento dos textos, permitindo que
amadureçam antes na intimidade do coração. Os leitores também buscam esse
retiro, o barulho sincopado das ondas, o zumbido discreto da brisa, e ali
mergulham confortavelmente na leitura. Precisam fazer o exercício do
distanciamento porque essa voz distante é sutil, e exige toda a atenção, sim,
ela exige fidelidade, deseja que o indivíduo se afine ao ritmo de alguma coisa
que agora se encontra longe no tempo e no espaço, embora se conserve viva nas
páginas de um livro. Sempre que o encontro acontece a contento, eis a
compreensão sucedida como se os limites naturais da existência se rompessem,
tornando possível um tipo de comunicação improvável.
Quando tomei a literatura por
companheira, descobri a consistência dessa solidão. Havia um território no qual
me embrenhava e decifrava segredos, um hemisfério que a mim se franqueava,
conquanto estabelecesse limites à entrada dos outros. Tornei-me frequentador
constante de bibliotecas, e farejei cada estante de livros à procura daquelas
obras que não somente me acrescentassem cultura, mas que sobretudo me
transformassem totalmente. O hábito da leitura não era apenas distração,
existia nele um caráter existencial, não era só me distinguir dos demais porque
conhecia os clássicos, era, na realidade, a busca do conhecimento de mim mesmo
refletido nos escritos de seres humanos a quem eu não conhecera pessoalmente,
autores de culturas e idiomas diversos que, de certo modo, traduziam parte
daquilo que sou. Em Fiódor Dostoievski padeci a angústia do autor confinado em
um ambiente hostil, sendo obrigado a conviver com a brutalidade, e protegendo a
todo custo o seu talento. Em Franz Kafka eu reconheci a angústia do indivíduo
massacrado pela burocracia do estado e oprimido por um ofício carente de
significado. Nos versos de Fernando Pessoa compreendi minha natureza
multifacetada, os eus diferentes dialogando comigo, e o sufoco de tentar
expressá-los como personagens literárias. E no surrealismo de Hermann Hesse
deparei-me com um espírito tão semelhante que ambos buscávamos o autoconhecimento
transcendendo a realidade meramente comezinha, e alcançando ambientes livres de
convenções e espiritualmente elevados, onde a alma conseguia alçar voos
libertadores. Todas essas vivências iam sendo acumuladas, e embora no comércio
das vulgaridades não valessem muito, considerei que fossem uma espécie de
tesouro que deveria manter guardado com todo cuidado.
Era natural que eu ansiasse
compartilhar essa herança, oferecer às demais pessoas um bocado dessas
experiências adquiridas, no entanto, fui compreendendo algo perturbador: na
mesma medida em que a vivência literária me tomava e também me distinguia,
criava igualmente uma dificuldade de comunicação. Havia demasiada densidade em
tudo aquilo, demasiada consistência, e a realidade terrível era que os outros
preferiam entreter-se com assuntos mais superficiais. Foi exatamente assim que
admiti o fato de que, embora fosse um tipo de diálogo, a literatura tinha
alguma coisa de seletivo, construindo amiúde uma torre de marfim onde se
refugiavam todos os que estavam encantados. Sim, eis que me havia transformado
em um homem recluso naquele território com raríssimos interlocutores, um ser
humano sapiente de uma linguagem fundamental conhecida por uma estirpe única.
Isso naturalmente favorecia os diálogos interiores, contudo, eu precisava
descobrir uma maneira de dar vazão a tudo que se acumulava por dentro, eu
precisava sair daquele sufoco do isolamento excessivo.
Tendo utilizado a literatura como
entrada, observei que deveria utilizá-la então como via de saída. Se o colóquio
não conseguisse atingir multidões, ao menos atingiria aqueles que estavam
dispostos a edificar uma ponte de comunicação estimulante através dos textos.
Fui assim traduzindo o que sou em escritos que ficavam como registro das
experiências, e as testemunhas que encontrasse no caminho seriam os
interlocutores que, conquanto não pudessem ser tocados fisicamente falando,
decerto seriam tocados intimamente. Como eu fora a testemunha de Dostoievski,
Pessoa, Kafka e Hesse, agora necessitaria buscar aqueles que me testemunhassem
também, e isso consistia no fechar de um círculo, o cumprimento da missão de
leitor e escritor. Isso era o verdadeiro significado daqueles anos de silêncio
e solidão mergulhado na leitura dos clássicos.
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