Casualmente, foi dessa
maneira que J. Castor defrontou-se com o quadro no terceiro andar daquela
agência de publicidade. Seu escritório era no sétimo, e jamais se deslocava ao
terceiro, onde havia apenas o almoxarifado. Dia desses, abrindo-se a porta do
elevador, atendeu ao impulso, e acabou descendo no piso errado. Tendo o
elevador se fechado com velocidade, hesitou entre aguardá-lo de novo ou
utilizar a escada, e antes que viesse a decidir, avistou o quadro. Tratava-se,
na verdade, de uma ilustração, uma ilustração de características refinadas,
admitiu J. Castor. Provavelmente servira a alguma campanha do passado, mas
perdendo sua utilidade, terminara figurando na parede suja daquele corredor. O
contraste, decerto o contraste com a parede sórdida justificava suficientemente
o seu espanto. A jovem da ilustração, a jovem de cabelos rubros, vestido branco
e singelo, carregando flores em um cesto, aquela jovem passeando em cenário
campestre, em um cenário longínquo, descosturado da realidade, aquela jovem
cativou J. Castor.
Havia um segredo no
terceiro andar, e J. Castor tornou-se cúmplice dele. Sempre que possível,
descia de modo discreto e, em silêncio, contemplava a protagonista da
ilustração. Suas feições não se encontravam meticulosamente delineadas pelo
artista: o nariz delicado e os lábios polposos distinguiam-se, porém, o resto
do semblante era apenas a suposição da placidez. Mesmo a suposição –
tão-somente ela – foi o bastante: J. Castor esperava com ânsias beber na fonte
daquela placidez, ser também ele habitante do cenário campesino, e partilhar a
companhia da jovem. Os escritórios claustrofóbicos, as criaturas gélidas e
descoradas de sua convivência, a cidade colossal, a cidade compressora de
gente, a cidade e todo o restante, enfim, contrapunham-se ao sonho. Sua
existência denunciava aridez, e J. Castor só queria mesmo deambular por outra
paisagem, umedecendo os pés descalços, sorvendo o oxigênio puro, mirando,
extasiado, os traços fisionômicos de sua jovem companheira. Sofria calado e
medonhamente ao debater-se no rodamoinho de tal delírio. Talvez não ignorasse
totalmente estar distanciado da realidade palpável, mas como aquele fascínio
exibisse garras tiranas, J. Castor não foi forte o suficiente para se libertar
da situação.
O delírio baralha a
compreensão dos signos externos – qualquer tratado de psicologia confirma isto
– e a vertigem de J. Castor transbordou, infectando inteiro o seu cotidiano.
Subindo a avenida central durante uma tarde chuvosa, enfim ele acreditou
surpreender a jovem no contato fortuito e miraculoso entre ambas as realidades.
O talhe humilde da mulher certamente acrescentava consistência humana à beldade
retratada na ilustração. J. Castor quase levitou ao testemunhar aquele desejo
supostamente realizado. Sim, é ela, estou
convicto… Outra pessoa em semelhante situação, caso comparasse as duas com
alguma lucidez, demonstraria ceticismo. A camponesa da ilustração exibia o
porte elegante e os cabelos fartos que faltavam à outra. O nariz da mulher de
talhe humilde imitava a delicadeza – concordo –, no entanto, a pele achava-se
recoberta com pequenas manchas. Quanto aos lábios polposos, eram característica
exclusiva da jovem campesina. Porém, J. Castor tinha um trunfo, e esse trunfo
consistia em haver discernido vestígios de inocência pastoral no semblante
daquela mulher. O encontro fortuito sucedeu em outras ocasiões, e J. Castor
brevemente cartografava todos os roteiros dela. Chegava logo cedo a um casarão
da avenida central e, ao entardecer, deixava o mesmo endereço rumo ao seu lar.
Certa vez, J. Castor observou-a conduzindo com meticuloso desvelo um homem
idoso pelas alamedas arborizadas do parque e, dessa forma, concluiu tratar-se
de uma enfermeira. Cada dia passado mais aumentava a sua afeição,
alimentando-se do testemunho visível oferecido por aquele cotidiano tão
generoso. Sabia necessário abordá-la em algum momento, porém, percebia-se
confuso quando tentava forjar mentalmente a situação que lhe parecesse mais
adequada.
Refém dessa confusão, J.
Castor acabou produzindo um desastre quando decidiu agir. Carecendo de uma
estratégia antecipada, bateu à porta do casarão talvez acreditando que a
ousadia fosse suficiente para conferir o êxito. Se ao menos tivesse ensaiado
duas ou três sentenças… J. Castor saiu-se com um balbuciar de frases trêmulas e
desconexas enquanto, junto à porta, a mulher testemunhava o seu vexame mal
conseguindo esconder o desconforto da situação. Sem dúvida foi desastroso. Saiu
dali abalado, devendo a ela justificativas convincentes, e supondo ter
estragado tudo. Desde então, seria totalmente impossível cruzarem-se na avenida
central como dois desconhecidos, e J. Castor viu-se limitado a espreitá-la,
sorrateiro e a distância, oculto entre as árvores ou em diferentes
esconderijos. Privar-se daquele contato mais próximo com a inocência pastoril,
contato diário e supostamente casual, rápido ia-se tornando algo desumano, e J.
Castor afundava em dolorosa tristeza. Consumia o tempo formulando soluções,
qualquer coisa que fosse capaz de consertar definitivamente o estrago. Mas na
verdade considerava-se já desmoralizado – diante de si mesmo e da outra – de
tal modo que todas as soluções refletidas se apresentavam como puras tolice e banalidade.
Foi assim se ajustando à condição de renegado, escolhendo abrigos que pudesse
encurtar o afastamento. Pouco mais daquele esforço, e a resignação talvez
fizesse com que se sentisse até mesmo satisfeito. A rotina do admirador
longínquo atingia certa estabilidade, e J. Castor imaginou ter driblado a
tristeza.
Sua satisfação reduzira-se
ao mínimo – tinha consciência –, no entanto, só dispunha daquilo realmente. Por
esse motivo, semanas depois, agoniou-se ao ser privado também daquele escasso
deslumbramento. A mulher de caráter humilde desapareceu – assim repentinamente
– como se os tons e as linhas da realidade palpável houvessem esmaecido. Outra
pessoa assumiu as obrigações no casarão, alguém tão diferente dela e também da
campesina que J. Castor não se permitiu ludibriar outra vez. Tomado pela
abstinência, buscou o terceiro andar, e ali descobriu que a contemplação fria
da imagem tornara-se insuficiente. Sua natureza exigia, ao menos, estar
vigilante atrás de árvores, protegido contra o risco de qualquer encontro
desastrado. A enfermeira carecia do porte elegante, entretanto, J. Castor
afeiçoara-se ao corpo em movimento. O vestígio campestre nela encontrado –
pouco, muito pouco – era o seu simulacro de primavera salvando-o do desespero
padecido em ambientes suburbanos. Só existia uma atitude a tomar em tal
circunstância, e embora J. Castor não a ignorasse, tremia sempre que se
dispunha a calcular suas consequências. Certa vez, ao cair da tarde, ousara
seguir aquela mesma mulher até a região distante onde ela habitava. Utilizara
todos os cuidados disponíveis, e conseguiu realizar o trajeto dissimulando-se a
ponto de não ser descoberto. Havia despendido, então, duas horas de trem até
atingir os limites da cidade, mantendo a distância segura, e ali avistara a
mulher ingressando por uma estrada de terra. Dessa maneira, J. Castor supunha
estar ciente de seu paradeiro.
Evocando essa recordação,
J. Castor decidiu-se novamente pela ousadia. Tomou o trem, e tendo saltado
naquela região longínqua, após alguns minutos de caminhada, acercou-se da
estrada de terra. A lama decerto respingaria nos sapatos, sujaria a barra de
suas calças, mas isso em nada o perturbou. Um casebre construído na base de
tijolos, cimento e ripas de madeira parecia aguardá-lo, e ainda titubeante J.
Castor bateu à porta. Foi atendido por uma velha de semblante sisudo, trajada
em negro do pescoço à borda inferior do vestido. Procuro uma senhorita, acredito que more aqui, uma senhorita enfermeira.
Havia algo de astuto e enérgico naquela senhora, e mesmo com os olhos
amarelecidos pela velhice, analisou-o com austeridade. Entre, disse. O ambiente era escuro, e além da umidade respirava-se
na atmosfera um cheiro rançoso de podridão. Com a mão rija e áspera, a velha
segurou o pulso de J. Castor: o contato causou nele imediata repugnância. Ela passou a noite em claro, meu senhor,
está cansada. Fez o possível… todo o possível. Conduziu-o a outro cômodo, e
solenemente mostrou-lhe o corpo do menino depositado sobre a mesa. Vê? Ele parece tranquilo agora, mas escarrou
sangue durante duas noites. Ela fez todo, todo o possível. J. Castor
estremeceu. Meio coberto por um véu branco, o garoto parecia um boneco de cera.
Obscena e explícita, a morte ali exibida era o contraponto grotesco de suas
esperanças. Buscava a vivacidade dos campos, a fonte da vera inocência, os
desejos realizados, não obstante, o cadáver sobre a mesa tudo corrompia. J.
Castor atentou para tossidos oriundos de outro canto do cômodo. Deus tenha misericórdia! disse a velha. O caçula também se adoentou. Está febril,
tem tremores e, às vezes, delira. O outro se achava junto à parede, deitado
sobre um colchão miserável, e seu semblante macerado voltava-se na direção do
morto.
J. Castor evitou o
desfalecimento diante de um cenário tão deprimente. Sob a atenção hábil e
sinistra da senhora, sentiu-se esgotar ao contato com tantas desgraças. Houve o
impulso de fugir, contudo, existia igualmente a consciência de ter-se atraído
por outra motivação. Talvez resistisse ainda dentro dele vestígios daquele
propósito inicial. Ah, o repouso campesino… Belinda!
O nome foi proferido pela velha. Um
homem veio te ver, Belinda. Surgindo por trás da parede que separava o
cômodo de dormir, Belinda adiantou-se vagarosamente. Decerto estivera tentando descansar,
reunir de novo as energias físicas perdidas após o fracasso da batalha. O outro
garoto continuava vivo, afinal, e exigiria dela novo combate. Manchas escuras
rodeavam os olhos de Belinda, rugas acentuavam-se no semblante, e os cabelos
que jamais foram rubros e fartos agora se mostravam de constituição ainda mais
frágil e carente de viçosidade. Fitou J. Castor desnorteada pelo sono. Belinda é tão só, sussurrou a velha, o senhor pode salvá-la. Belinda gastou
alguns instantes até visualizá-lo com clareza, e passado certo estranhamento,
assomou-lhe ao rosto toda a estupefação. Havia reconhecido o protagonista de
uma circunstância patética. Reagiu com certa indignação no começo, mas em
seguida o cansaço venceu, repondo nela a letargia. Mesmo visivelmente
humilhada, Belinda submeteu-se a encará-lo de modo suplicante. J. Castor recuou
automaticamente: não viera preparado para aquilo. Trata-se de um engano, senhorita, me perdoe, me perdoe. Soltando-se
das garras hábeis da velha, evadiu-se às pressas do casebre.
Pegou o táxi que surgiu na
primeira esquina. Dentro do automóvel, aspirou o cheiro consistente do couro
macio nos bancos. Sentia-se, finalmente, seguro. Para onde, doutor? J. Castor considerou a pergunta, e respondeu ao
motorista: Me leve para longe… para bem
longe.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).