Tendo a psicanálise surgido como resultado das investigações médicas de
um neurologista judeu, eu não estaria enganado se evocasse certo aspecto
concernente à história religiosa dos israelitas no intuito de tentar entender a
contribuição de seu criador. Mesmo que Sigmund Freud fosse ateu por convicção,
ainda assim devemos admitir que determinadas características da tradição de um
indivíduo não desaparecem tão facilmente, sobretudo quando nos referimos a uma
tradição marcante como a judaica. Isso talvez até ele próprio fosse capaz de
concordar, considerando o fato de que escreveu uma análise importante sobre
Moisés, e a si mesmo muitas vezes se identificou com esse personagem bíblico. Mas
a que vem essa observação? Trata-se de compreender a existência de
características religiosas no processo da psicanálise, características essas
que foram provavelmente secularizadas pelo labor científico de Freud, e que, no
entanto, podem ser identificadas pela investigação atenta de um bom estudioso.
Provavelmente, não chegaremos a discernir isso se nos cegarmos por qualquer
visão ideológica acerca da psicanálise. Não se tenciona aqui batizar o trabalho
intelectual de Freud nas águas sacras da argumentação espiritual, porém sim
descobrir as origens mais remotas de aspectos marcantes no processo analítico.
Um
desses aspectos consiste na questão da fala ou, melhor dizendo, da cura através
da fala. Com o expediente da livre associação, o analisando manifesta-se
verbalmente, dando assim a oportunidade ao psicanalista de identificar em seu
discurso elementos do inconsciente que se revelam espontaneamente. O que se
encontra oculto, ou seja, aquilo que em muitas ocasiões é a origem de
transtornos psicológicos, acaba sendo trazido à superfície, dessa maneira
oferecendo ao analista a chance de interpretar a personalidade do sujeito.
Trata-se de um processo criado por Freud depois de ter buscado acessar as
verdades enterradas no inconsciente por meio da hipnoterapia, por exemplo, e de
outros métodos que não se mostraram tão eficazes. Na posição de ouvinte, o
psicanalista atenta-se aos vestígios da realidade obscura que se camufla sob as
palavras, na tentativa de decifrar de modo competente as estruturas psíquicas
daquele que ali está submetido à análise. Portanto, estabelece-se uma relação
em que duas posições distintas se completam: aquela do indivíduo que fala
utilizando-se com isso da livre associação e a outra do psicanalista que escuta
fazendo uso dos instrumentos técnicos que possui.
Pode-se
relacionar isso com algo da tradição judaica? De uma forma bastante liberal,
evoco a conhecida sentença hebraica Shemá
Israel, cuja tradução é Ouve, Israel.
O ato de ouvir é algo essencial dentro da cultura dos judeus, em princípio no
que tange a ouvir as palavras divinas – neste caso, o indivíduo se coloca na
posição de escutar passivamente tudo aquilo que Deus lhe diz –, e em segunda
instância na transmissão dos ensinamentos que acontece através da oralidade, ou
seja, é falando que um judeu transfere ao outro a verdade de sua religião. Usei
o termo verdade, e ele se aplica aqui muitíssimo bem, porque para o judaísmo o
Senhor representa justamente a verdade, não uma verdade entre muitas, mas sim a
verdade única, oriunda de um Deus único. Quando observamos o shema no âmbito da psicanálise,
entendemos que o ato de falar, próprio do analisando, transmite também a
verdade de seu interior. Essa analogia talvez pareça contraditória se
considerarmos que muito frequentemente na história da psicanálise parece ter
havido certa indisposição entre suas principais teorias e os ensinamentos das
religiões instituídas, no entanto, nem sempre é assim tão necessário colocar
psicanálise e religião em conflito. De fato, nas conferências realizadas na
Universidade católica de Bruxelas, Jacques Lacan afirma: “... se a psicanálise
não triunfar sobre a religião, é porque a religião é inquebrantável. A
psicanálise não triunfará: sobreviverá ou não.” E ainda: “Não triunfará apenas
sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras coisas. É inclusive
impossível imaginar quão poderosa é a religião.”
Pois bem, a escuta psicanalítica insere-se nessa dinâmica que conserva
laços ancestrais com o judaísmo. Dentro de cada ser humano existe uma situação
psíquica que solicita certa via de expressão, e a psicanálise oferece
exatamente essa oportunidade, colocando o analista na posição de quem se atenta
a tudo o que é falado, com o objetivo de conduzir o analisando à descoberta de
si mesmo e, também, ao alívio de seus sofrimentos. Eis que a tradição vetusta
do shemá se manifesta, não em uma
circunstância essencialmente espiritual, contudo, mantendo ainda elementos
relevantes de consistência. É o verdadeiro que se revela, é algo que se transmite
de um indivíduo ao outro, sigilosamente, de fato, como se ali existisse um
segredo precioso, algo que necessita ser tratado com o devido respeito. Sem
dúvida, cabe ao psicanalista tratar esse processo com imenso desvelo, entendendo
sempre que tudo aquilo que é dito representa a intimidade de alguém, não
raramente uma intimidade dolorosa que só se manifesta no desenrolar da terapia,
de forma muito paciente.
O
falar é o modus operandi dentro da
psicanálise, o caminho rumo ao inconsciente, e a escuta é parte importante da
elaboração intelectual do psicanalista.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).
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