1º
Cabe-nos encontrar em Jesus Cristo o nosso modelo de santidade. O Filho de Deus se revela, sem dúvida, a máxima regra a partir da qual todas as outras procedem[1]. Sim, Cristo mostra-se o paradigma, e iluminados pelo Espírito Santo, devemos adquirir-lhe a semelhança, imitando as feições de Sua divindade. São Paulo confessa: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2: 20), demonstrando quão possível é alcançar esse ideal. Os santos – todos eles – comprovam-nos também essa realidade, em maior ou menor escala. Portanto, devemos urgentemente ser imitadores de Jesus Cristo. Tal verdade, já tantas vezes apresentada por apóstolos, teólogos e místicos, propõe-nos um horizonte. Ora, todo indivíduo que se disponha à peregrinação, calcula, antecipadamente, a distância que o separa do objetivo, levando em conta, é claro, o ponto de partida. Sem saber localizar-se corretamente, o êxito da jornada torna-se comprometido. Também nós nos colocamos como peregrinos, e o que desejamos é assumir integralmente o Cristo. Porém, a que distância estamos desse modelo que se chama Jesus?
Temos, muitas vezes, certa visão
vacilante acerca daquilo que somos. Ocasionalmente ocorre considerarmo-nos
melhores ou piores do que deveríamos considerar, e esse equívoco de julgamento
certamente é obstáculo árduo a vencer durante a peregrinação. Como disse,
carece ter a ótica precisa do que somos, e utilizar essa informação como ponto
de partida. Poderemos então, em seguida, responder às seguintes questões: Quanto nos falta até alcançar a imitação
correta de Cristo? Quando será possível afirmar, sinceramente, aquilo mesmo que
afirmou São Paulo: é Cristo que vive em mim? Com a quantidade extensa de
informações oferecidas pelos meios de comunicação, acontece-nos,
constantemente, ser soterrados por uma avalanche de imagens, regras de
comportamento, slogans de campanha, ditaduras da moda, exortações ideológicas,
etc. Tudo isso, de variadas maneiras, gruda-se à nossa personalidade,
deturpando-a, e tornando mais complexa a tarefa que nos compete, ou seja,
conhecer a nossa real situação diante do verdadeiro modelo: Jesus Cristo.
Há determinadas circunstâncias em que
nos questionamos com grande profundidade e contrição a respeito daquilo que
somos ante a face de Deus. Claro que suscitar questões é algo corriqueiro
dentro da caminhada espiritual e, não obstante, nessas situações específicas, a
dúvida exacerba-se na intimidade da alma. Torna-se necessário, dessa maneira,
que Jesus envie luzes sobre a criatura para que, observando-se a si mesma com
outro discernimento, consiga melhor conduzir-se na caminhada em direção à
santidade. Utilizo esse termo preciso “conduzir-se”, aparentemente em
contraponto à idéia de ser conduzido por Deus, porque embora o Senhor guie-nos de
diversas formas, é também verdade que a Ele agrada-lhe que usemos de maneira livre
e sabiamente a nossa vontade com o intuito de tomar decisões adequadas em nossa
existência. Ora, só toma decisões adequadas aquele que conserva a clareza da
visão, e só conserva a clareza da visão quem sabe reconhecer a si mesmo diante
de Cristo. Trazendo, pois, esse dilema no coração, e tendo meditado durante algum
tempo, suponho ser adequado constatar – valendo-me do auxílio da graça, é claro
– que as Sagradas Escrituras contêm o maior e mais importante cabedal existente
de situações e tipos humanos, e que suas palavras decerto nos auxiliam a
interpretar aquilo que somos. Portanto, havendo alcançado essa constatação,
urge ao peregrino desvencilhar-se do método de interpretação da Bíblia
utilizado atualmente – o método modernista – com o intuito de, escolhendo outra
vereda, atingir a interpretação de si mesmo segundo a Bíblia.
2.
A teologia chamada modernista que,
durante o século vinte, exerceu inegável influência dentro do catolicismo,
chegando, inclusive, a determinar algumas teses centrais do Concílio Vaticano
II – mesmo depois de ter suas bases condenadas pelo Papa Pio X na encíclica Pascendi Dominici Gregis – é originária
da teologia liberal protestante. As religiões demonstram em sua história, por
vezes, certas “viradas” extravagantes, como acontece no caso do protestantismo
que, tendo firmado os alicerces primordiais sobre o famoso conceito de sola fide, em seguida viu desenvolver-se
em seu seio uma tendência teológica de tal maneira racionalista que,
transformando o uso do questionamento (ou da dúvida metódica) em uma espécie de
fetiche, pretendeu descobrir explicações naturais para o caráter sobrenatural
dos textos bíblicos, e, não as deparando de modo absoluto, terminou incidindo
no ceticismo. O ceticismo, nesse caso, é evidente que corrói, em essência, a
possibilidade de justificação pela fé, pois se existe experimentalmente
pouquíssima certeza a respeito de tudo aquilo que argumentam as Sagradas
Escrituras, então a “hipótese da fé” transmite a impressão de ter sua
credibilidade comprometida. Uma virada histórica que conduz à contradição!
Sob a influência desse racionalismo
estrito, a teologia modernista transformou o campo da exegese bíblica em
território habitado por arqueólogos, linguistas, historiadores, sociólogos,
psiquiatras, etc., que, distanciando-se demasiadamente da interpretação
transcendente e tradicional das Sagradas Escrituras, enveredaram pelo caminho
de dissecação dos textos. Assim como ao anatomista interessa-lhe mais
compreender o funcionamento interno do corpo humano que descobrir as causas
espirituais que originam a vida desse mesmo corpo, igualmente o exegeta moderno
atribui maior relevância ao estudo do contexto social e político da narrativa, ao
rigor terminológico da tradução, à identificação do estilo literário escolhido
pelos autores, etc. Utilizando esse método analítico, o exegeta também
demonstra a pretensão de datar com extrema certeza os eventos históricos,
averiguando, assim, a veracidade dos acontecimentos e a credibilidade
existencial dos personagens. Tencionam colocar à prova os diversos testemunhos
miraculosos encontrados na Bíblia, com o objetivo de enquadrá-los ou não dentro
do gênero de enfermidades como, por exemplo, a psicose, a esquizofrenia ou a
alucinação em massa. A gênese divina do texto bíblico e sua mensagem
soteriológica são relegadas à segunda ordem – muitas vezes, são até mesmo
abolidas do estudo –, e o que se nota, geralmente, é a desmedida ambição de comprovar a narrativa sagrada a fim de
que, somente então, ela se faça digna de fé.
Tal virada histórica que conduz à contradição não se manifesta apenas dentro do contexto protestante com o aparecimento da teologia liberal – conforme foi acima mencionado –, manifesta-se também dentro do catolicismo. A teologia tradicional da Igreja Católica, desenvolvida principalmente no decorrer dos períodos da patrística e da escolástica, partia da seguinte premissa: credere ut intelligere, ou seja, crer para compreender. Logo, a Bíblia não necessitava receber antecipadamente o carimbo da razão para, só então, conquistar o status de veracidade. Ao contrário, em Santo Agostinho, Santo Anselmo da Cantuária, São Tomás de Aquino e tantos outros semelhantes, exigia-se a fé em Deus – isto sim! – como bagagem imprescindível àquele peregrino que demonstrasse a pretensão de percorrer as Sagradas Escrituras. Tendo a fé, o indivíduo encontraria franqueado o acesso ao conhecimento da realidade divina.
Por certo, não me oponho, em absoluto, à
utilização de certas ciências como instrumentos de investigação. A linguística
ou a arqueologia, por exemplo, ocorrem de ser proveitosas – e, de fato, já o
demonstraram em algumas ocasiões – quando conseguem lançar luzes sobre
determinados aspectos dos textos bíblicos, tornando-os, desse modo, mais
evidentes à nossa inteligência. Cito aqui Marcos 12: 30, onde Jesus Cristo diz:
“Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com todas as forças.” O
entendimento (ou a razão) deve, portanto, consistir em meio de adoração a Deus,
e realmente sempre o foi nos escritos dos Santos Padres e dos escolásticos,
porque, então, o intelecto estava a serviço do homem que se dirige ao Senhor e
do Senhor que se dirige ao homem. Porém, considerando a teologia modernista –
cuja característica expressei acima – o uso da razão descamba para o
racionalismo estrito, e em seguida, desse racionalismo estrito para o ceticismo
descarado, subvertendo a ordem natural e sobrenatural do ser humano ao fazer
com que o entendimento seja colocado em atitude contrária a Deus, e não a seu
favor, como é conveniente. Para a teologia modernista, parente próxima do
iluminismo e do positivismo, o conhecimento transforma-se, por diversas vezes,
em arma que costuma ser utilizada contra a própria fé, tencionando assim desmistificá-la.
Mas o fato é que essa tendência
teológica espalhou-se, durante todo o século vinte, influenciando seminários,
universidades, publicações, movimentos religiosos, paróquias, etc., a despeito
da condenação lançada pelo Papa Pio X em 1907. Na encíclica Pascendi Dominici Gregis, o Papa
ofereceu o seu aviso aos católicos, afirmando que o modernismo ameaçava
arruinar as estruturas da fé cristã com o veneno da argumentação racionalista.
Pois bem, ao que parece, esse aviso teve prazo de validade curto, e após o mal
haver-se disseminado, os mesmos católicos assistiram, espantados, a uma grande
evasão de fiéis – evidência de que a fé daqueles que abandonavam a Igreja
Católica encontrava-se prejudicada. Um Papa posterior (Bento XVI), quando ainda
professor na Universidade de Tübingen, prognosticou: “A Igreja diminuirá de
tamanho…”, e disse ainda, nessa mesma circunstância, que do grupo pequeno
restante, a Igreja encontraria forças para se erguer outra vez. Também acredito
nisso. Contudo, suponho ser interessante reiterar que essa crise do catolicismo
contemporâneo acha-se intimamente ligada ao desmoronamento daquilo que chamamos
de virtude da fé, e ainda antes disso, ao equívoco na escolha do método a ser utilizado
quando o objetivo é dedicar-se à leitura das Sagradas Escrituras.
3.
A Bíblia não contém somente a história
da salvação da humanidade, mas também a história da salvação de cada ser humano,
em particular. Temos, por vezes, a tentação de diluir tal conceito ou, melhor
dizendo, tal realidade – a realidade soteriológica – dentro de um tratamento
que se vale desse termo demasiado abstrato: humanidade. Talvez porque seja mais
simples encarar a salvação em comboio, ao invés de encará-la individualmente, e
conquanto eu compreenda, sem dúvida alguma, a dimensão coletiva da salvação –
reconhecida como Igreja Católica – o esforço de cada indivíduo rumo à
santificação de si mesmo é absolutamente necessário. Em João 10: 14-15 o Filho
de Deus assevera: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas e elas me
conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai.” Portanto, mesmo
veladamente, a alusão a todos aqueles que serão resgatados pelo sangue do
cordeiro é inserida na história da salvação – ou seja, dentro das Sagradas
Escrituras – quando Cristo proclama: conheço
as minhas ovelhas… Isso nos deve conduzir à conclusão do quanto é
imprescindível compreender a mensagem de Deus dentro da perspectiva de nossa
própria salvação. Ou seja, temos que suscitar, com incansável constância, este importante
questionamento: o que a Palavra do Senhor está dizendo-me especialmente?
Mencionei no começo deste ensaio que
todos nós carregamos conosco variados dilemas. O ser humano é um enigma para si
mesmo! Se não nos esforçamos no sentido de encontrar soluções verdadeiras para
tantas dúvidas, as questões vão-se acumulando e, inevitavelmente, em algum
momento, compreendemo-nos enredados, surgindo a impressão de experimentar, inúmeras
vezes, uma circunstância carente de saída. Cada existência humana traz,
portanto, seus dilemas particulares, e resolvê-los significa, em derradeira
instância, dar um novo passo em direção a Deus. Pode-se também utilizar a
seguinte imagem: sempre que outro nó é desatado, encontramo-nos um pouco mais
libertos de nossas limitações, e, ao mesmo tempo, mais próximos do Senhor. Conforme
os véus que escondem a presença de Jesus Cristo em nosso interior são erguidos,
contemplamos a Sua presença com maior clareza e, em consequência, refletimos
mais perfeitamente em nós as suas virtudes. A história de vida legada por
alguns santos serve-nos, sem dúvida, como testemunho desse esforço. Cito, por
exemplo, os casos de Santo Agostinho, Santo Inácio de Loyola e do Beato Charles
de Foucauld. Todos eles se colocaram no caminho de Cristo à medida que tentaram
dar solução às suas dúvidas interiores – e o fizeram bebendo continuamente na
fonte das Sagradas Escrituras.
Não se argumente, em oposição, que a
ótica aqui apresentada incorre no perigo de transformar a vida espiritual em
uma via excessivamente personalista. De fato, se estou propondo um
relacionamento mais íntimo e individual do cristão com Deus através do texto
bíblico, não o faço sugerindo o estado de isolamento. A leitura da Bíblia, por
si apenas, sem o encontro comunitário junto à ceia eucarística ou sem o diálogo
amoroso com os irmãos não produzirá os mesmos frutos da santificação. Porém, em
contrapartida, quando o indivíduo escolher edificar a existência sobre os pilares
tradicionais da fé cristã, buscando, ao mesmo tempo, nas Sagradas Escrituras, a
solução para as questões essenciais da alma, neste caso, então, estou convicto
de que, como fiel devoto, avançará na peregrinação rumo a Jesus Cristo,
tornando-se mais próximo não somente do Filho de Deus, mas igualmente e de modo
necessário, da comunidade.
4.
Não tenciono estabelecer, nesta
dissertação, qualquer método de leitura da Bíblia que se pretenda único e
exclusivo. Quando a teologia descamba para o discurso ideológico, existe a tendência
acentuada de proclamar-se o método novo e definitivo que suplantará todos os
anteriores. Há nisto, é evidente, além de prepotência desavergonhada, sem
dúvida uma descomunal ignorância histórica. Pois a teologia cristã tem,
praticamente, dois mil anos, e desprezar a sua herança espiritual e
intelectual, declarando-se superior significa assinar um atestado de estultice.
A verdadeira inovação compreendida nesse tipo de estudo consiste geralmente em
acrescentar alguma ou outra peça preciosa a esse tesouro conservado; mas também
é possível defini-la como o aprofundamento do sentido sobrenatural da ciência
teológica. Caso qualquer nova
teologia surgida argumente condenando a tradição, nesta circunstância é
necessário toda cautela, porque estamos diante de uma moeda falsificada. Por
esse motivo, ao defender aqui o método de leitura que eu convenientemente
denomino via negativa, admito não
estar inaugurando nada de tão inédito. Tampouco pretendo com esse método varrer
os dois milênios de cristianismo como diversas vezes tencionaram fazer os
modernistas.
O método da via negativa consiste pura e
simplesmente em colocar-se a si mesmo na posição das principais personagens
bíblicas a fim de reconhecer o contraste resultante da comparação. Por exemplo:
em variadas circunstâncias, Deus dirigiu-se a homens e mulheres durante a
história da salvação, transmitindo-lhes, pouco a pouco, todo o conteúdo da
palavra revelada, e outorgando-lhes certas missões muitíssimo específicas. Tais
personagens, às vezes com alguma teimosia, outras vezes demonstrando até mesmo
escasso preparo, sabemos que, na maioria dos relatos, levaram a bom termo suas
missões. Caso estivéssemos vivenciando exatamente essas circunstâncias, como é
que nós nos comportaríamos? Ou seja, trata-se, em suma, de ocupar
experimentalmente o lugar de Abraão, Moisés, Elias ou Davi, assim tencionando enfrentar
aquelas situações que a eles competiam. Proponho, dessa maneira, uma espécie de
exercício que reputo ser verdadeiramente escola de humildade, porque ao
realiza-lo é mais provável que nos reconheçamos incompetentes para cumprir
satisfatoriamente tais incumbências, o que nos conduzirá, então, a confessar
quão indignos somos de assumir tais responsabilidades. Que contraste! A
santidade dos patriarcas, profetas, apóstolos, etc., lançando luzes sobre nossas
misérias, a fim de revelar a indigência espiritual em que vivemos. Dessa
maneira, percebemos com maior clareza quem nós somos ante a face do Senhor.
Admito novamente que esse método aludido não chega a ser qualquer novidade,
contudo, é fato inquestionável que anda bastante esquecido.
O caráter negativo desse método está
justamente na possibilidade de reconhecer, através dele, as limitações do
peregrino. Quando julgamos, em algumas ocasião, ter já alcançado altíssimo nível
espiritual, estamos à beira de uma situação perigosa: o orgulho pode, em breve,
derrubar-nos com facilidade. Para impedir essa queda, creio ser suficiente
colocar diante dos olhos, por exemplo, a figura de São João Batista, realizando,
desse modo, uma espécie de comparação. Ora, qualquer indivíduo que conte ainda
com alguma sinceridade, e também disponha de sanidade mental intacta, perceberá
a perturbadora diferença existente entre ele e o Precursor. Com isso, trata de
despir-se consequentemente das elevadas imagens que tanto acalentava a respeito
de si mesmo. Ocorre, nesse momento, aquele rasgar-se dos véus que encobrem a
realidade, aquela ruptura das ilusões que escamoteiam aquilo que somos. Vem à
tona, em seguida, a verdade! A verdade sobre a nossa situação defronte de Deus.
Ora, se carecemos das virtudes exigidas para alcançar a semelhança de São João
Batista, quão grande teremos que admitir ser a distância entre nós e a real imitação
de Jesus Cristo! O peregrino desfruta, assim, daquele conhecimento importante:
o conhecimento do ponto de partida. Compreendendo com maior distinção,
finalmente, os estágios que necessitará ultrapassar até atingir o derradeiro
objetivo.