" " NOVA CASTÁLIA: DEPRESSÃO E PSICANÁLISE

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quarta-feira, 14 de março de 2018

DEPRESSÃO E PSICANÁLISE



Diante da revolução causada pelo advento dos meios de comunicação em massa, e sobretudo a internet, cujo surgimento teve a capacidade de encurtar distâncias, eis que a psicanálise defronta-se com certos temas recorrentes que não deixam de ser contraditórios. Um deles consiste exatamente no fato de termos a possibilidade de manter contato com milhares de pessoas através de redes sociais como o Facebook e, ao mesmo tempo, estarmos sujeitos à solidão e a quadros depressivos. A constatação de tais circunstâncias suscita questões relevantes, e cabe ao psicanalista investigar as consequências disso na estrutura psíquica dos analisados. Conquanto o manejo desses meios de comunicação tenha aberto horizontes, a relação meramente virtual não demonstra a capacidade de saciar carências naturais. Refiro-me a carências de consistência física vinculadas à afetividade que somente podem ser saciadas por quem se mostra presente.
Também é interessante analisarmos como os indivíduos reagem à exposição persistente aos modelos elaborados pelo show business. Filmes, seriados, novelas e clipes musicais estabelecem cenários com personagens e enredos que não são exatamente a realidade da maioria, desse modo criando parâmetros que se transformam em ideal daqueles que se encontram à mercê dessa influência. Há demasiado glamour, culto à beleza e ao sucesso, ilusão do dinheiro em abundância, e tudo isso que aparentemente é sedutor, está também em contraposição à realidade comum. Quando ocorre a comparação entre a simplicidade da existência comezinha e os modelos artificiais de comportamento construídos pelo show business, constata-se diferenças que são flagrantes, e consequentemente surgem a decepção, a sensação de inferioridade, e uma tendência significava para o surgimento da depressão. Toda expectativa não cumprida tem a capacidade de ocasionar frustrações, e esse contraste entre a realidade e os símbolos de status das indústrias de entretenimento certamente pode produzir uma situação frustrante.
Se considerarmos a extensão dessas influências na cultura da sociedade contemporânea, entenderemos o quanto as pessoas estão sujeitas a desenvolver quadros depressivos. O efeito causado pelo entretenimento superficial oferecido por redes sociais e também pelo show business pode ser comprometedor, e a camuflagem de distrações forjada devido a esse contato escamoteia os verdadeiros problemas dos quais os indivíduos padecem eventualmente. De fato, não costuma existir nessa dependência com a cultura do entretenimento qualquer interesse real pelo conhecimento da verdade, qualquer estímulo verídico de alimentar laços afetivos duradouros, nem tampouco interesse sincero de buscar os bens mais valiosos da existência humana. Sempre que o psicanalista defronta-se com um diagnóstico dessa natureza, há dois estágios de tratamento que necessariamente devem ser cumpridos: em primeiro lugar, dissipar as ilusões que obnubilam a consciência, a fim de que o analisado reencontre o princípio da realidade; e em segundo lugar, auxiliar esse analisado no processo de conhecimento de si mesmo, desenvolvendo sua personalidade naquilo que precisa ser desenvolvida, e estabelecendo valores sólidos em contraponto ao que é superficial.
Para além da depressão surgida como resultado de uma circunstância inerente ao contexto cultural desta época, contexto que muito frequentemente privilegia a frivolidade, existem também casos que ocorrem de modo diverso, ou seja, como sintomas de uma crise existencial mais profunda. Há quadros dessa espécie, e isso costumeiramente vem retratado inclusive em obras artísticas, pois não é exatamente incomum que pessoas dedicadas à vida artística ou intelectuais sofram males de características depressivas. Nos casos ora aludidos, reconhece-se claramente posturas diferentes no que tange ao sofrimento experimentado durante a enfermidade: de fato, inúmeros artistas conseguem traduzir em trabalhos consistentes os elementos característicos da depressão, realizando assim a sublimação. Transformar o sofrimento em algo diferente, elevar sua condição, engendrando uma experiência do tipo catártica revela-se próprio de personalidades artísticas complexas. Muitas delas, inclusive, foram escrutadas por psicanalistas competentes, e hoje servem como modelos exemplares de personalidade humana.
O diálogo do filósofo Boécio com a musa Filosofia demonstra perfeitamente bem esse estado de tristeza extrema que talvez pudesse conduzir o indivíduo ao suicídio não fosse o movimento benfazejo no sentido da verdade. As contrariedades da existência, as injustiças, as decepções, enfim, tudo aquilo que nos afeta psicologicamente pode suscitar o início de um cenário depressivo, e a atitude pessoal diante destas situações determinará a possibilidade de cura ou o mergulho na escuridão da doença. Quando o indivíduo tem um compromisso autêntico com a verdade, o processo psicanalítico demonstra êxito. David E. Zimerman escreve: "Em diversas passagens de seus textos técnicos, Freud reiterou o quanto ele considerava a importância que a verdade representa para a evolução exitosa do processo psicanalítico. Mais exatamente, a sua ênfase incidia na necessidade de que o psicanalista fosse uma pessoa veraz, verdadeira e que somente a partir dessa condição fundamental é que a análise poderia, de fato, promover as mudanças verdadeiras nos analisandos. Dessa firme posição de Freud, podemos tirar uma primeira conclusão: mais do que unicamente uma obrigação de ordem ética, a regra do amor à verdade também se constitui como um elemento essencial de técnica de psicanálise." (Fundamentos Psicanalíticos, Porto Alegre – Artmed – 2007). Também encontramos na obra de Fiódor Dostoievski a situação adversa da prisão e da tristeza transformada em trabalho artístico. O escritor russo, tendo passado anos cumprindo pena por conspiração contra o Czar, relatou suas experiências angustiantes na Sibéria em um romance autobiográfico: Recordações da Casa dos Mortos. Ali a aflição de ter a liberdade usurpada, o contato rude com outros prisioneiros, as dificuldades do clima invernal, tudo tem o potencial de ocasionar um quadro depressivo. Se essa circunstância não sucedeu, se tanto Boécio quanto Dostoievski extraíram luz da escuridão, isso definitivamente mostra que a depressão não é o último estágio possível.

Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).


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