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quinta-feira, 23 de outubro de 2014
sexta-feira, 17 de outubro de 2014
PEDAGOGIA BENEDITINA: SUMÁRIO
Sou um leigo católico e não um monge beneditino, mesmo assim, havendo refletido acerca da Regra de São Bento, decidi expor ao público o resultado dessas meditações. Gostaria de oferecer aos leitores a mesma santidade pessoal dos Padres do deserto, contudo, isto se encontra acima das minhas possibilidades. Peço que entendam essa limitação de minha natureza, e apreciem o esforço empreendido nos ensaios que seguem. Grato.
Gabriel Santamaria
Gabriel Santamaria
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
PEDAGOGIA BENEDITINA: A CONDIÇÃO DO SER HUMANO
PEDAGOGIA BENEDITINA
MEDITAÇÕES
SOBRE O PRÓLOGO DA REGRA DE S. BENTO
DEDICO
ESTA OBRA AO PAPA EMÉRITO BENTO XVI QUE, ESCOLHENDO O FUNDADOR DA ORDEM
BENEDITINA COMO INSPIRAÇÃO DE SEU PONTIFICADO, REALÇOU NOVAMENTE A IMPORTÂNCIA
DO MONAQUISMO PARA A HISTÓRIA DA IGREJA.
PRIMEIRA
PARTE
1.
A
CONDIÇÃO DO SER HUMANO
Se alguém supõe encontrar na vida
monástica um caminho que conduza à extinção plena dos desejos, terá fatalmente
que admitir o malogro de seus propósitos, pois o ato de desejar pertence à
condição humana, e porque isto é assim, ou seja, legítimo, e porque temos a
necessidade de saber utilizar corretamente aquilo que é tão legítimo, somos
providos da virtude do discernimento. O discernimento deve auxiliar-nos a
reconhecer, entre os desejos possíveis, aqueles que são realmente os melhores,
para nestes recair a nossa escolha. Deus não nos criou como meros autômatos, ao
contrário, criou-nos munidos de liberdade, fornecendo-nos virtudes para que
pudéssemos direcionar o arbítrio com sabedoria. Mas quando a inteligência não
exerce seu domínio sobre os desejos, o ser humano torna-se refém de diversos
impulsos, e permanecendo dividido por apetites múltiplos, aceitando
submeter-se a desejos opostos, acaba imergindo em uma situação de caos espiritual.
Portanto, é imprescindível que façamos utilização competente daquilo que o
Criador dispôs em nossa constituição para que, sendo legítimo desejar,
desejemos o que é mais conveniente. Manter firmemente na memória essa realidade
é de relevância extrema àqueles que buscam a existência monástica: não se trata
de extirpar desde a raiz um elemento constituinte da natureza humana, trata-se
de corrigi-lo e bem ordená-lo segundo o princípio divino. Por esse motivo
existe a Regra: submeter-se a ela significa educar-se ou reeducar-se fazendo
uso de um processo pedagógico favorável. Posso afirmar com bastante segurança
que, em geral, a condição de pecado é causada menos pela presença, na alma, de
fatores extrínsecos que exijam ser extraídos e mais por uma espécie de
desorganização das virtudes próprias do ser humano. Aquele que, havendo
ingressado na vida monástica, compreende essa realidade, saberá aproveitar da
Regra beneditina aquilo que, de fato, ela tem a oferecer.
Há
inúmeras motivações capazes de convencer o indivíduo a ingressar em uma
comunidade monástica, e essas motivações se estendem desde um ponto de vista
sumamente justificável descendo, inclusive, ao ponto das justificativas
irrelevantes. Mesmo que se demonstre contraditório – considerando-se que do
monge exige-se humildade e recolhimento –, muitas pessoas vislumbram ali a
possibilidade de ascender a uma condição social de maior destaque. É factual
que o surgimento de mosteiros, tanto no Oriente quanto no Ocidente, resulta
como consequência de uma busca espiritual, e nela se sacrificam as ambições
mundanas em troca de um encontro com Deus através do silêncio e da solidão. Porém,
também é verdade que, no transcorrer dos séculos, a vida monástica desenvolveu-se
em sentido ligeiramente diverso, reaproximando essas comunidades do ambiente
social, exatamente aquele ambiente do qual tentara distanciar-se, em princípio,
visando uma existência solitária. Conforme se iam transformando em centros de
conservação e difusão da cultura, e começaram a exercer influência econômica
através de suas atividades laborativas[1],
os mosteiros estreitaram novamente laços com o mundo. Naturalmente, além de
ser, em tese, uma referência espiritual, o representante da existência
monástica transformou-se igualmente em figura de relevância pública. Com isso,
vestir o hábito tornou-se um caminho relativamente cômodo para se alçar a outro
patamar da sociedade, sacrificando o ideal da humildade em nome do orgulho
individual. Porém, a exigência da Regra consistia em buscar o recolhimento e a
discrição[2], e
ao se permitir influenciar pelos símbolos de sucesso do mundo, o indivíduo que
se dedica ao monaquismo trai um elemento essencial dessa mesma Regra.
O desenvolvimento histórico do
monaquismo foi salutar, por um lado, ao possibilitar a preservação da herança
cultural do Ocidente no momento em que a civilização romana sucumbia frente às
invasões bárbaras, e, contudo, foi também problemático, por outro lado, ao permitir
que se mitigasse muito daquele rigor pretendido originalmente por Bento de
Núrsia. Uma vida dedicada ao cultivo do campo e ao trabalho artesanal propicia
um tipo de rotina certamente mais severa e rústica do que a caracterizada pelas
atividades intelectuais. Além do papel econômico exercido pelos mosteiros, a
missão cultural a eles atribuída em determinado período transformou
substancialmente o aspecto da existência monástica, produzindo uma situação de
maior conforto contraposta à Regra. Pois bem, a busca de uma situação
confortável que proporcione ao indivíduo estabilidade e segurança financeiras –
ou seja, um futuro garantido – pode ser, e frequentemente acaba sendo,
motivação para ingresso na vida monástica. Neste caso, ocorre de um fator
apenas acidental assumir o lugar de um elemento essencial. Buscar nessa
estrutura somente facilidades consiste em um contraponto ao exemplo dado por
Jesus[3] e,
em consequência, está no sentido inverso daquilo que ensina a Regra beneditina.
Para além do exercício físico do trabalho – cuja função é não só dar glória a
Deus através dos frutos colhidos com o próprio esforço, mas, igualmente, cuidar
para que o monge não incorra em um estado de letargia –, a existência monástica
também solicita o exercício espiritual constante, e, em ambos os casos, a
comodidade é uma espécie de vírus que tudo corrói, malogrando ou então
corrompendo os frutos. Eis onde reside o perigo. A Regra instiga-nos a uma
observância cuidadosa, a uma diligência no sentido de corrigir nossos defeitos,
a uma boa disposição para proceder corretamente segundo o Evangelho, e tudo
pode ser comprometido quando a alma se permite dominar pelo mal do comodismo.
Pôr no centro da discussão o
desenvolvimento histórico do monaquismo e as estruturas oriundas não representa
condenar integralmente uma circunstância que, ao fim e ao cabo, talvez fosse
inevitável. Os mosteiros que se dedicaram a copiar milhares de obras relevantes
da antiguidade e, em seguida, fomentaram o renascimento intelectual do
cristianismo com o vigor dessa herança conservada, empreenderam um verdadeiro
ato de caridade. Se existiu alguma mudança significante de rota, se o objetivo
primeiro da Regra não passava pela atuação cultural, e se tal mudança acabou
ocasionando ciladas para o monge, deve-se antes procurar compreender o fator
acidental – evitando, assim, cair nas ciladas – do que simplesmente pretender rechaçar
a estrutura construída. Porque, de fato, há certa tendência a rechaçar o legado
da história monástica, tendência que, conquanto seja absolutamente extrínseca
ao próprio cristianismo, às vezes suscita vocações bastante desvirtuadas. Menciono
esse fato referindo-me aos conceitos defendidos por alguns setores mais
progressistas da Igreja, cujo objetivo consiste em promover a adaptação da fé
cristã às contingências do tempo. Para tais setores, o peso da tradição
acumulada durante os dois milênios de catolicismo torna impossível uma forma de
movimentação mais ligeira da instituição através da sociedade. Seria necessário,
portanto, trocar os modelos antigos por padrões ágeis e modernos. Seguindo esse
postulado ideológico, os círculos progressistas estimulam o surgimento de uma nova
forma de comportamento monástico que, na realidade, em nada se coaduna com os
princípios da vida contemplativa. Por exemplo, defendem um contato mais aberto
com o mundo em contraponto à intenção original do chamado que consiste no
encontro silente e recolhido com Deus; exigem dos religiosos um modus operandi alicerçado sobre o
ativismo visando, desse modo, realizar mudanças sociais; tudo isso sempre
combatendo as feições tradicionais do monaquismo, e acusando-o de mostrar-se
incompatível com as necessidades da época vigente. Todas as vezes que alguém
aceita comprometer-se com os votos, e traja o hábito monástico, decide
assimilar a essência da Regra, assimilando consequentemente sua tradição; ao
fazê-lo, no entanto, se aquilo que o motiva for de caráter ideológico, e não
espiritual, de fato encontra-se deturpando o sentido verdadeiro da vida monástica.
Pois não se trata de desconstruir um modelo de experiência cristã ancestral a
fim de construir um modelo novo e mais palatável ao ser humano moderno;
trata-se, isto sim, de assumir totalmente aquilo que pregaram os Padres do
deserto – especificamente neste estudo: São Bento de Núrsia –, conservando a
chama viva dos mosteiros.
O ato de assumir, nos costumes, as
prescrições da Regra e, em consequência, manter a riqueza da tradição
aproxima-se daquilo que considero ser a motivação verdadeira para o ingresso na
existência monástica. Com isso, o monge acerca-se do exemplo deixado pelos
antecessores. Mesmo assim, é necessário ter bastante cuidado com o propósito de
conservar aquilo tudo que o desenvolvimento histórico deixou como herança. Há
belezas artísticas e intelectuais incrustadas nessa estrutura erguida no
decorrer dos séculos, e é fato que elas exercem intenso poder de sedução tanto
sobre os sentidos quanto sobre a inteligência, e embora essas coisas sejam
magníficas, sem dúvida, a simples conservação formal não ocupará o lugar
daquilo que é substancial no monaquismo. Existe uma essência que sustenta os
elementos exteriores, uma fonte de vida que alimenta os membros do corpo, e uma
experiência de caráter sobrenatural que justifica a construção natural. Sem
esse fator, preservar apenas a forma visível significa desprezar a realidade,
ostentando um simples teatro de aparências. O hábito característico da ordem, o
canto gregoriano, a utilização do latim, toda a solenidade que acompanha a
liturgia, os objetos artísticos que decoram as igrejas, enfim, tudo aquilo que
torna bela e memorável a vivência monástica ainda não é razão convincente para
a ela se dedicar. Como disse, exercem profunda influência no imaginário e, por
ser tão fascinantes, induzem certos indivíduos a acreditar que a repetição de
ritos e costumes dessa mesma expressão formal consiste em motivação suficiente.
Mas com isto ainda não chegamos ao centro da vocação. Para que se efetue, no
monge, a transformação é imprescindível compreender que, na Regra, temos um
processo pedagógico cujo objetivo está em consertar o ser humano, reformá-lo
integralmente, retirando-o da condição do pecado, e preparando-o para um
encontro com Deus ainda neste mundo e, posteriormente, no Reino dos Céus.
Logo no começo do Prólogo, São Bento
exorta:
Escuta,
filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa
vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai, para que voltes, pelo labor
da obediência, àquele de quem te afastaste pela negligência da desobediência.
Percebe-se nessas primeiras
palavras um diagnóstico acerca da condição humana: a Regra é dirigida, em tom
exortativo, a quem se afastou (de Deus) pelo desvio da desobediência. Portanto,
existe uma denúncia clara a respeito do estado atual do homem. Todo aquele que
busca o encontro pessoal e silente com o Senhor, dentro de uma comunidade
composta por monges, deve fazê-lo não porque em si mesmo constate qualquer
superioridade, perfeição ou conduta modelar, mas sim por reconhecer-se
exatamente como este que, havendo-se desviado da via correta em razão da
desobediência, a ela necessita regressar submetendo-se à correção. Se
considerarmos que o Prólogo consiste na porta de entrada da existência monástica,
também admitiremos a exigência de descartar as ilusões sobre nossa condição
individual antes de entrar nesse recinto. Uma atitude humilde se transforma em
requisito básico. Submetemo-nos à Regra não porque possuímos uma resistência
acima da média, ao contrário, dela necessitamos como sustentáculo de uma
criatura constituída de fragilidades. Sem essa Regra, o indivíduo é uma
criatura defeituosa, munido dela, torna-se alguém comprometido com um processo
restaurador. E a restauração do ser humano passa forçosamente pela
reorganização das virtudes dadas por Deus. As más escolhas, que nos desviam do
Criador porque correspondem a atos de desobediência, apresentam-se como uma
consequência do caos estabelecido na alma. Quando nós sabemos esperar, meditar,
desfrutar, adorar e amar corretamente, tudo fazemos honrando a Deus. Em
contrapartida, ao deixarmos que as virtudes se desorganizem, esperamos o que
não se cumpre, meditamos o que não tem profundidade nem consistência,
desfrutamos o que não convém, adoramos o que é inferior e amamos de modo passageiro. Há um
desconserto em nós, e, desse modo, afastamo-nos da realização de nosso
potencial.
Para muitos, hoje em dia, valer-se de
uma concepção negativa do status humano decerto parecerá algo desagradável. Como
disse anteriormente, existe uma forma de ditadura ideológica no âmbito
intelectual cujo objetivo é impor proibições, e entre essas proibições
encontra-se o intento de coibir a utilização corrente de conceitos como pecado,
inferno e perdição. Ganhando contornos teológicos mais específicos, essa
tendência afirma que tais conceitos integram um modelo antiquado e reacionário
que precisa ser superado por outro modelo de características modernas e
supostamente iluminadas. Seria urgente, dessa forma, realçar o que existe de
bom na criatura, atirando luzes sobre sua dignidade, sem renegá-la a uma
posição de decadência. Existe uma realidade nessa afirmação: de fato, o homem
carrega em si mesmo a dignidade da gênese divina, e isso justifica plenamente a
imolação salvífica de Jesus Cristo. O ser humano é valioso, e Deus à morte
entregou-se para redimi-lo. Trata-se de uma conclusão inegável sobre a qual se
assenta o cristianismo. Postular esse dado como uma verdade fundamental da fé
tem caráter imprescindível, entretanto, devemos ser cuidadosos para que a
constatação não camufle os malefícios causados pelo pecado em uma estrutura que
é boa em princípio. A dignidade da criatura não está excluída de uma análise
antropológica da Regra. Aliás, isso é parte preponderante de sua motivação. Se
Bento de Núrsia começa o compêndio desvelando a situação de desobediência do
ser humano não é porque lhe agrade apresentar uma imagem decaída. Seu propósito
está alicerçado na esperança de recuperar e preservar a natureza digna do
homem, e partindo do pressuposto de que ela foi conspurcada pela maldade,
oferece-nos a Regra como uma espécie de direcionamento para regressarmos à via
direita.
Não existe incompatibilidade entre a
percepção do estado de decadência do ser humano e o fato positivo da redenção
porque, no contexto teológico, essas duas situações reúnem-se em uma única
estrutura. Mostra-o muito bem a sequência dos livros que compõem a Bíblia: após
ter sido criada por Deus, a humanidade perverte-se, e necessita ser reeducada
pela atuação de patriarcas, profetas e sábios doutores, até o advento do Cristo
Salvador. Mesmo a morte e a ressurreição de Jesus que, arcando com o preço do
pecado, abriu novamente as portas do Céu, vieram acompanhadas pela prática
pedagógica do Filho de Deus. Nos anos de vida pública, Jesus se empenhou em
corrigir e ensinar aqueles que, por Ele, tinham sido chamados. O Sermão da
Montanha sintetiza com primor essa característica de Sua missão. Sem o
sacrifício na cruz, a obediência sincera aos mandamentos não seria suficiente,
mas o sacrifício desprovido dessa mesma obediência também não basta: convém
submeter-se à pedagogia de Jesus Cristo se aquilo que se deseja é conquistar a
vida eterna. Toda experiência monástica – não só a beneditina – busca
constituir um caminho delimitado de seguimento a este ensino. Há muitas regras,
e todas elas são expressões formais da fidelidade à pedagogia cristã dentro de
um estado de vida específico. Dizer pedagogia beneditina significa dizer, então,
vivência dos mandamentos cristãos a partir da compilação feita por São Bento, e
embora ele fosse um monge exemplar, Aquele a quem precisamos escutar é,
sobretudo, Deus.
[1]
Stark, Rodney: A Vitória da Razão – Como o Cristianismo Gerou a Liberdade, os
Direitos do Homem, o Capitalismo e o Sucesso do Ocidente, 2007, Lisboa,
Tribuna da História.
[2] Segundo o Prólogo da Regra de
São Bento, os monges “são aqueles
que, temendo o Senhor, não se tornam orgulhosos por causa de sua boa
observância, mas, julgando que mesmo as coisas boas não podem ser obra sua, mas
foram feitas pelo Senhor, glorificam Aquele que neles opera, dizendo com o
profeta: Não a nós, Senhor, não a nós,
mas ao vosso nome dai glória”.
[3] Mateus 8: 20: E Jesus lhe disse: “As raposas têm tocas e
os pássaros do céu, ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a
cabeça”.
OBRAS DO AUTOR
OBRAS DO AUTOR
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
PEDAGOGIA BENEDITINA: SOBRE O MESTRE E O DISCÍPULO
2. SOBRE O MESTRE E O DISCÍPULO
Somos todos vocacionados a realizar, de
modo integral, nossas possibilidades existenciais. Não há quem seja atirado ao
mundo casualmente, quem esteja desprovido de um caminho pessoal, quem careça de
um desígnio específico concebido por Deus. Os indivíduos todos compartilham, em
princípio, o chamado que é universalmente válido: amar a Deus acima de todas as
coisas e aos outros como a si mesmo, assim alcançando a salvação e a vida
eterna. Trata-se de obrigação essencial da qual não se deve descuidar, e que
precisa ser atualizada tanto na dimensão contemplativa quanto na dimensão
ativa, tanto no contexto sobrenatural quanto no contexto natural. Para além
desse chamado universal, existe também a vocação específica, e esta pode
manifestar-se de maneiras variadas: há os que são convocados à vida
religiosa/sacerdotal e há aqueles que se sentem inclinados ao matrimônio. Há
vocações literárias, acadêmicas, jurídicas, políticas, empresariais, agrícolas,
etc. Saber, com exatidão, qual caminho lhe compete especificamente é uma das
obrigações mais árduas do ser humano. Contudo, tendo derrotado as dificuldades
e conquistado tal conhecimento, o ser humano ainda não deve estabelecer-se em
uma região de conforto. Pois, então, mostra-se necessário descobrir uma forma
objetiva de compactuar aquela vocação universal (da caridade cristã) com este
chamamento singular de vida prática. Esta última necessariamente solicita uma
rotina de atitudes condizentes com a primeira mencionada: para que chegue a bom
termo, é mesmo indispensável que o chamado universal permeie todas as ações do
indivíduo.
Talvez o que foi exposto acima pareça
algo genérico, e como a questão essencial reside em transformar um preceito
universal em atitudes cotidianas, temos que dispor de um programa não apenas
exortativo, mas também pedagógico, na medida em que ofereça prescrições
específicas que modelem nosso comportamento. Porém, sobre que tipo de alicerce
tal programa deve ser construído? Isto é importante definir, pois todo aquele
que busca a própria realização (restauração) solicita que a tarefa seja
empreendida em condição de estabilidade. Tudo é sempre melhor que seja feito
sobre suportes confiáveis. Sem dúvida, em Deus encontramos a confiança, Deus é
a rocha firme sobre a qual podemos edificar nossa existência, a pedra angular
por excelência. As sociedades arcaicas organizavam-se inteiramente tendo a
presença do sagrado no centro de todas as atividades: o matrimônio, o trabalho,
a política, as expedições, a agricultura, etc. Nunca houve existência real para
além do contato permanente com o divino[1]. Portanto,
o sagrado fundamentava os intercâmbios sociais, e não somente, mas também servia
como um modelo ou arquétipo. A imitação do ato criador perpetrado pelas
divindades era periodicamente revivida em rituais religiosos. Estar conectado
com o divino era exatamente aquilo que oferecia substrato ontológico ao ser
humano das culturas tradicionais: sua existência integral estava garantida
enquanto se mantivesse firme tal comunhão[2].
Particularmente, cada indivíduo esforçava-se por assumir bem o seu papel nessa
estrutura. Evadir-se dela representava abandonar as fronteiras, cair fora da
realidade. Sendo assim, temos um precedente histórico confiável provando que é
possível constituir uma rotina embasada no paradigma divino.
Firmada nos ensinamentos de Jesus
Cristo, a Regra beneditina produz uma comunidade em que tudo está centrado em Deus.
Ele é o sustentáculo da rotina vigente, e a seiva que alimenta cada instante do
dia. Porque os monges encontram-se unidos ao Cristo através das orações, o
mosteiro existe. Sem a presença cotidiana do sagrado, o mosteiro não se
justifica. E é necessário que verdadeiramente Deus perpasse todas as dimensões,
e não apenas da comunidade: dos indivíduos também[3]. A
existência de um mosteiro ordena-se criteriosamente em períodos de oração,
trabalho, estudo e lazer, e a obrigação do monge não se resume a cumprir essas
atividades com diligência. Cabe-lhe, do mesmo modo, deixar-se influenciar pela
harmonia externa a fim de que se reflita na sua alma. Como nas sociedades
arcaicas, a estrutura é construída seguindo o paradigma divino, sendo
imprescindível àquele que nela habita assimilar em si mesmo a ordem celestial
dessa estrutura. Deus é o princípio causador de todas as virtudes, Ele é, sem
dúvida, a bondade, a justiça, o amor e o sacrifício por excelência, e se
conspurcamos a semelhança perfeita oferecida a nós gratuitamente, devemos
buscar a purificação com o intento de reconstruir essa similitude. Todo
mosteiro precisa ser, portanto, o ambiente próprio da purificação, e o seu
programa de santidade, aplicado àquele que ali se encontra, conduzirá à sua edificação.
Revela-se imprescindível – como disse – que o monge harmonize cuidadosamente a
sua alma com os ensinamentos e os exemplos do Filho de Deus.
São Bento de Núrsia entende isso
perfeitamente, e começa seu Prólogo nos exortando da seguinte maneira: Escuta,
filho, os preceitos do Mestre. A tradição pedagógica do cristianismo remete-nos às
fontes judaicas e gregas, e
essa frase introdutória, esse convite à sabedoria de Deus e à restauração da
criatura, contém um elemento essencial das fontes mencionadas: a exigência de
uma postura submissa e aplicada do discípulo, bem como a disposição para a
escuta e o silêncio. Ocasionalmente já se aventou que o silêncio monástico
esteja em contraposição ao anúncio do Evangelho, que em si represente uma
espécie de fuga das obrigações cristãs, que denote uma postura demasiado
indiferente diante dos sofrimentos da humanidade. No entanto, essa necessidade
de escuta e de silêncio não precisa ser interpretada desde um ponto de vista
negativo; não se trata aqui de silenciar contra toda a espécie humana, mas de
aquietar-se a fim de favorecer a atenção devotada aos preceitos Daquele que nos
ensina. Porque é conveniente, em um contexto pedagógico, o monge se aquieta – e
igualmente por respeito. Respeito a Deus, e aos demais irmãos que,
compartilhando os ideais do mosteiro, apresentam-se como fiéis discípulos de
Cristo. São Bento dedica um capítulo inteiro da Regra à virtude da humildade, e
de tudo aquilo que é realmente imprescindível aos que se submetem ao
aprendizado, a humildade demonstra ser das mais importantes. Pois, conforme
vimos nas páginas introdutórias, reconhecer a verdadeira condição do ser
humano, e aceitar as ações corretivas tem muita relevância. O discípulo
comprometido deverá receber os ensinamentos consciente da própria situação e
da utilidade vital do programa pedagógico.
Devemos, pois, constituir uma escola de serviço do Senhor. Nesta
instituição esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado. Mas se aparecer
alguma coisa um pouco mais rigorosa, ditada por motivo de equidade, para emenda
dos vícios ou conservação da caridade não fujas logo, tomado de pavor, do
caminho da salvação, que nunca se abre senão por penoso início. Mas, com o
progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o coração e com inenarrável
doçura de amor corre-se pelos caminhos dos mandamentos de Deus, de modo que não
nos separando jamais do seu magistério e perseverando no mosteiro, em sua
doutrina, até a morte, participemos, pela paciência, dos sofrimentos do Cristo
a fim de também merecermos ser coerdeiros de seu reino. Amém.
Referi-me, no começo deste segundo
tópico, ao fato de que nos santificamos no seio de uma estrutura, que o centro
dessa estrutura é Deus, e que sua construção busca refletir, integralmente, a
ordem estabelecida pelo Criador. Portanto, existe um esquema de caráter
hierárquico que principia no alto, em uma atmosfera puramente sobrenatural, e
desce, em seguida, até a região natural, redundando na edificação do indivíduo.
Será interessante analisar um tanto mais detidamente, no caso específico da
Regra beneditina, de que modo as dimensões do homem – todas elas – são
restauradas no cumprimento da rotina monástica, e de que forma isso se encontra
intimamente relacionado ao Cristo. Sem dúvida, é correto afirmar que o Verbo
encarnado, naquilo tudo em que consiste e representa, deve ser compreendido
como a chave de interpretação perfeita para a Regra coligida por São Bento de
Núrsia. Por esse motivo é tão precioso escutarmos o divino Mestre com muita
atenção: Ele que se manifesta como Pai e Espírito Santo, manifesta-se também como
Filho, ofertando a nós o caminho de salvação em que se comungam as naturezas carnal
e espiritual harmoniosamente. Embora muitos possam concluir que o padrão do
monasticismo beneditino seja São Bento, essa não é a conclusão adequada.
Durante a sua existência, todo o esforço de São Bento aconteceu no sentido de
tentar imprimir em si mesmo a semelhança de Jesus, mergulhando naqueles trinta
anos discretos e silenciosos do Senhor transcorridos parcialmente em Nazaré, e
assimilando igualmente a experiência da oração solitária no deserto, quando
Cristo encontrava-se então anunciando o evangelho do Reino. Em Jesus, portanto,
nós descobrimos o monge por excelência, assim como descobrimos também o
sacerdote, o pedagogo, o pregador, o missionário e o benfeitor. Nele
absolutamente tudo deve ser compreendido como um modelo.
Contemplar intelectualmente os tempos em
que Jesus vivia do trabalho manual, com discrição, é tarefa que guarda imensos
tesouros espirituais para o monge. Nesse período devotado ao silêncio, Jesus conservou-se
em uma aldeia desprovida de importância, agindo à semelhança de outros
indivíduos comuns. Sua existência era ignorada pelo resto da humanidade. Contudo,
esse período de espera e de preparação não esteve desprovido de fecundidade
salvífica. Às escondidas, envolvido com as atividades corriqueiras do trabalho,
o Senhor deu a cada gesto um significado redentor. Neste sentido, é
imprescindível que meditemos quanto Ele nos ensina ao escolher
preferencialmente a obscuridade, a carência total de clamor público. Trata-se
de uma primorosa demonstração de humildade. Sua rotina, então, não causou
qualquer impacto, e sendo Jesus Cristo o Filho de Deus, o Verbo encarnado,
devemos também considerar que trazia consigo a possibilidade de abalar as
estruturas do real ao proferir unicamente uma palavra, e se desse modo não
agiu, se respeitou a quietude exigida naquele momento, foi movido por uma
obediência severa. Ciente da missão que Lhe competia, aceitou em tudo ser
submisso ao Pai. Neste mundo ruidoso e altivo em que atualmente vivemos, e no
qual tanto se cobra o sucesso, a eloquência, a popularidade, a exposição,
torna-se um imenso desafio não apenas entender esses primeiros tempos da
existência de Jesus, mas principalmente escolhê-lo como destino pessoal. E aqui
é de suma importância ressaltar o fato seguinte: ninguém nunca será capaz de
assumir, em si mesmo, de modo excelente, todas as missões de Jesus Cristo.
Naquilo que teve de monástico, predicante, missionário, pedagógico, etc., Ele
atingiu a perfeição. Sendo assim, ao acatar o chamado para o cumprimento
particular de uma dessas dimensões concernentes à existência cristã, também
somos convidados, muitas vezes, a sacrificar o exercício absoluto das dimensões
restantes. Por exemplo, no caso do caminho monástico, para aqueles que a isto
se dedicam, talvez se demonstre árduo e doloroso admitir a exigência de abdicar
o anúncio público do Evangelho com o intuito de, em contrapartida, empreender o
mergulho no silêncio dos primeiros trinta anos do Salvador. Contudo, se não
fosse dessa maneira, se o monge não assumisse totalmente em si um estado de
discrição, como afirmaria, convicto, ter-se comprometido a viver a dimensão do
anonimato silencioso de Cristo? Há inumeráveis mistérios e sublimidades
sigilosamente guardadas naqueles trinta primeiros anos, e para o cristianismo acredito
ser imprescindível não as esquecer, e nem tampouco as desperdiçar. Poderia
alguém evocar, neste ponto, a existência de monges que se dedicaram à pregação,
evangelizaram milhares de pessoas, conquistando, inclusive, notoriedade
pública. Houve, de fato, exemplos desse tipo, assim como aconteceram igualmente
monges que saíram em missão para terras estrangeiras. Porém, sempre nos restará
a mesma questão: devemos tomar tal possibilidade como argumento justificável ao
escolher uma vida monástica? Não seriam os fatores acima mencionados meramente
acidentais? E o que há realmente de essencial na Regra de São Bento? Descobrir
as feições precisas de Jesus Cristo impressas no carisma beneditino parece-me o
caminho mais seguro para que possamos vislumbrar tal essência.
Havendo compreendido o caráter peculiar
de sua condição, e mergulhado, com firme ousadia, na discrição silenciosa dos
primeiros tempos de Jesus, o monge deve pretender estreitar intimamente seus
laços com Deus. O relacionamento substancial entre o Pai, o Filho e o Espírito
Santo é um modelo que precisa ser seguido, pois revela consonância entre as
pessoas da Santíssima Trindade. Cristo a nós ofertou Seu sangue e Seu corpo,
tornando possível participarmos substancialmente de Sua divindade, e
consequentemente também da relação íntima com o Pai através de Seu Santo
Espírito que, sendo caridade puríssima, do Pai procede e ao Pai retorna. A
dedicação à existência monástica exige dos indivíduos que busquem esse diálogo
interior, da mesma forma que Jesus buscava. Jesus que sempre se mostrou
obediente ao Pai, através da oração mantinha com Ele um colóquio fecundo e
orientador[4].
Sobretudo assim é que o monge se orienta, assim adquire pureza e mansidão,
faz-se obediente, e assume totalmente a vontade do Senhor[5].
Mesmo durante as suas atividades práticas, na execução de seu trabalho
corriqueiro, o indivíduo que escolheu a existência monástica, acatando o
chamado divino, deve encontrar uma forma de desenvolver a oração. Não somente
nos momentos da Liturgia das Horas: em todos os momentos, a jornada do monge
necessita ser orante. Cristo escolhia instantes precisos para afastar-se e,
solitariamente, estar com o Pai, no entanto, isto jamais significou que, nas
demais situações, a consubstancialidade estivesse comprometida. De maneira
semelhante, o monge precisa estar em comunhão permanente com Deus, sabendo que,
às vezes, será mais intensa essa comunhão.
Nesse processo de assimilação do Cristo,
além de participar do silêncio, do trabalho e da vida contemplativa, o monge
também é convidado a partilhar humildemente a fase mais crucial da existência
terrena do Filho de Deus, ou seja, os três anos dedicados ao anúncio do Reino.
Muitos talvez considerem contraditório, afinal, se se solicita o recolhimento e
a quietude ao monge, de que modo conciliará essas características com a
manifestação sonora da Palavra? Recordo perfeitamente ter mencionado acima quão
importante é, ao monge, afirmar-se no seu estado específico, sacrificando a
possibilidade de experimentar a missão integral de Cristo. Cabe ao monge, de
fato, a discreta solidão. Mas dentro dessa situação peculiar, de uma forma
conveniente à vocação monástica, a comunidade reúne-se tendo o objetivo de
anunciar – a todo o universo – que existe um Deus Uno e Trino, cuja
misericórdia exacerba-se a ponto de oferecer Seu Filho Unigênito para remissão
de nossos pecados, sem se esquecer de nos entregar, ao mesmo tempo, a própria
Mãe do Salvador como santa intercessora. Na sua estrutura, a Liturgia das Horas
busca refletir a história inteira da salvação, do princípio ao termo, pois é
bom e salutar que isso seja repetidamente contado e entoado. Durante o dia, em
horários definidos segundo a tradição, os monges ecoam o que foi determinado
pela sabedoria divina. Tudo é louvor, proclamação da verdade, e mesmo que o
anúncio esteja ali sendo testemunhado tão-somente por alguns poucos indivíduos
consagrados, trata-se, indubitavelmente, da Boa Nova do Reino.
Existe em Jesus a natureza totalmente
humana e a natureza totalmente divina, ambas em uma só Pessoa, e as duas
santificando a humanidade, submetendo-se ao sacrifício redentor, e é o Cristo
que ensina, como um todo, servindo de modelo. Se na imitação do Senhor não nos
cabe assumir a plenitude do Cristo[6],
cabe-nos, pelo menos, permitir que Ele, em toda a sua dimensão, a nós nos
ilumine, restaurando-nos em nossa constituição limitada. Por esse motivo, a
doutrina da Igreja sempre rechaçou qualquer tipo de espiritualidade descarnada.
A ressurreição na qual acreditamos é a ressurreição dos corpos também, e isto
justifica, afinal, porque o Verbo se fez carne. Criado por Deus em corpo e
alma, e tendo sido insuflado o Espírito através de suas narinas, o homem
comprometeu-se por inteiro ao enganar-se pelo pecado, sendo necessário que o
Filho do Altíssimo assumisse inteiramente a condição humana. O mestre tenciona
sempre formar o discípulo à sua imagem e semelhança, valendo-se dos
ensinamentos que transmite e da coerência de suas atitudes. Na intimidade do
mosteiro, vivendo unido com seus irmãos, o monge dedicado faz de si mesmo um
bom discípulo, santificando-se através da ação e da oração, até que nele se
imprima a imagem e a semelhança do Cristo.
[1]
Mircea Eliade: Mito do Eterno Retorno, 1992, São Paulo,
Editora Mercuryo. Do mesmo autor: O
Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões, 2001, São Paulo, Martins
Fontes.
[2]Antonin-Dalmace
Sertillanges escreveu na obra A Vida
Intelectual – Seu Espírito, Suas Condições e Seus Métodos: “A ordem do espírito deve
corresponder à ordem das coisas. No real tudo ascende para o divino, tudo dele
depende, porque tudo dele procede.”
[3] 1 Coríntios 10, 31: Portanto, quer comais, quer bebais, quer
façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus.
[4]
Carta a Proba, de Santo Agostinho: “Pois do próprio Senhor se escreveu que
passava noites em oração e que orava demoradamente; e nisto, o que fazia a não
ser dar-nos o exemplo, ele que no tempo é o intercessor oportuno e, com o Pai,
aquele que eternamente nos atende.”
[5] Mateus 6, 6: Tu, porém, quando orardes, entra no teu quarto e, fechando a tua porta,
ora a teu Pai que está lá, no segredo; e teu Pai, que vê no segredo, te
recompensará.
[6]
1 Coríntios 12, 27 – 30: Ora, vós sois o
corpo de Cristo e sois os seus membros, cada um por sua parte. E aqueles que
Deus estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar, apóstolos; em segundo lugar,
profetas; em terceiro lugar, doutores… Vêm, a seguir, os dons dos milagres, das
curas, da assistência, do governo e o de falar línguas. Porventura, são todos
apóstolos? Todos profetas? Todos doutores? Todos realizam milagres? Todos têm o
dom de curar? Todos falam línguas? Todos as interpretam?
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