1.
E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.
Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.
Eugénio
de Andrade
Quando o passado
regressa, contamina tudo aquilo que existe. Os instantes, até mesmo isso o
passado contamina. O instante do despertar e perceber o escárnio teimoso do
vazio no lado oposto da cama. O passado é consistente e doloroso e quase
palpável e quase passível de ser carnalmente tocado. Por baixo das folhas
descoradas que recobrem o chão, o passado mistura-se à poeira das ruas,
evocando Lisboa. Os cafés de Lisboa, os passeios de toda a gente, os elétricos,
o Tejo deitando-se, jeitoso, em direção ao oceano. Tudo revivido. O passado
confunde os signos do cotidiano, toda a estrutura da realidade, desordenando as
mesmices da aposentadoria de Gaspar. Torna-se, então, o segundo, o terceiro, o
quinto, o vigésimo significado presente nos versos, nos versos conhecidos desde
sempre e continuamente redescobertos. O passado ressurge desse modo, impedindo
Gaspar de esquecê-la: Celeste Correia dos Reis Azinhaga.
O riso de
Celeste. Os caracóis cor de trigo dos cabelos que os ventos do Algarve
emaranharam em certo Agosto já distante. Celeste ostentando cabelos revoltos em
contraste com a doçura costumeira de gestos e expressões. Curvava o dorso e
utilizando os braços, envolvia os joelhos desnudos. O sol do Algarve
dourava-lhe as faces pintalgadas. Volvia-se, de quando em quando, o verde dos
olhos confidenciando segredos. Todos dirigidos a Gaspar, e guardados
silenciosamente por ele durante décadas. Todos regressando na conhecida
caligrafia daquele envelope perturbador e surpreendente.
*
Gaspar Fernandez
ocupara a cátedra de Literatura Comparada durante vinte e cinco anos na
Universidade de São Paulo. Caso desejasse, estaria apto a continuar ocupando o
cargo como outros professores, mas quando surgiu uma oportunidade da
aposentaria, resolveu aproveitá-la. Poucos colegas conheceram o motivo de tal
decisão: causava-lhe aborrecimento tanto a excessiva politização do curso
quanto o debilitado talento dos estudantes. Gaspar jamais se casou, e desde o
falecimento do pai, residia, sozinho, na mesma antiga casa localizada no bairro
de Higienópolis. Com tempo vago, dedicou-se principalmente à paixão pela
literatura – agora purificada dos estandartes ideológicos. Construída
criteriosamente durante as últimas duas décadas, sua biblioteca particular era
realmente bastante diversificada. Gaspar admirava todos os autores
selecionados, porém, escolhia guardar uma predileção especial aos poetas
brasileiros e portugueses.
Todas as tardes
acomodava-se à varanda, cercado por vasos e também acompanhado de algum pardal
que eventualmente ali se abrigasse. Consigo trazia este ou aquele volume
selecionado. Ajeitava os óculos, geralmente despendendo breves segundos até
reconhecer a postura que julgasse adequada. O estofado da cadeira de vime era
confortável. Desfolhava os versos, então, apreciando-os, desprovido daquela
exigência profissional do catedrático; só necessitava ter, em tais momentos, o
amor dedicado à poesia. Os adeptos do fanatismo ideológico que costumavam
infestar o Departamento de Letras, enxergando racismo e opressão em cada
simples metáfora, estavam completamente excluídos daquele seu momento
particular. Só a voz dos poetas ecoava. Gaspar cedia, em certas ocasiões, à
tentação de meditar um tanto mais demoradamente acerca de um e outro trecho.
Declinava o livro aberto sobre o peito, e vagando o olhar de modo displicente,
deixava o pensamento voejar enquanto observava o movimento cotidiano do bairro.
Os dias
conservavam a mesma estrutura. Criou a rotina quase espontaneamente, como
consequência dos traços de personalidade que lhe eram característicos. Gostava,
por exemplo, de percorrer as vias de Higienópolis depois de tempestades
raivosas. Tão logo cessava a torrente, todas as impressões eram colhidas por
Gaspar, desde a visão do asfalto coberto por folhagens e galhos retorcidos até
os odores peculiares da chuva. Talvez julgasse captar algo de poético naquelas
circunstâncias. Cercado pelo concreto de São Paulo, tais ocasiões ofereciam-lhe
o contato mais próximo com a natureza, como se o furor da tempestade rompesse a
agitação da cidade, o caos diário de pedestres e automóveis. Os minutos que
sucediam às chuvas violentas induziam muitos habitantes à indecisão: o céu
continuava tingido com tonalidades escuras, e trovões espocavam, aqui e acolá,
desacreditando os aventureiros. Decerto pareceria bem pouco seguro arriscar-se
ao exterior naquela situação. Não obstante, Gaspar costumava aproveitar esses
raros momentos, e trajando a capa grossa e adequada, calçando sempre os sapatos
de solas emborrachadas, escolhia o percurso de forma aleatória, recolhendo nos
cabelos curtos os derradeiros pingos do firmamento.
Todas as
atividades da vida rotineira eram realizadas solitariamente. Transcorridos já
dez anos desde o falecimento de seu pai, o velho Fernandez, Gaspar compreendia,
com resignação, que o estado solitário atingira um nível de estabilidade. Vez
por outra, acontecia-lhe sentir saudades do velho Fernandez e seus colóquios
renitentes, suas esquisitices de ancião. Mas, em geral, entendia ter-se
acostumando com a ausência. Após haver-se retirado para a aposentadoria, talvez
movido por decoro social, chegou a visitar o campus uma ou duas vezes, porém,
ao fazê-lo, compreendeu estar definitivamente excluído daquele ambiente, como
se os colegas e ele existissem em dimensões paralelas. Ora, paciência, Gaspar resignou-se, desobrigando-se de qualquer
abatimento. Conseguia, inclusive, concordar que algo daquele seu estado
solitário apetecia-lhe. Os livros prediletos serviam-lhe perfeitamente como
fiéis companheiros. Seus caprichos e costumes compuseram, portanto, o cotidiano
de uma velhice sossegada.
Ocorria-lhe,
amiúde, frequentar certo restaurante português da região. O habitual era fazer
as refeições diante do televisor, acomodado no sofá, observando o noticiário
com desinteresse, como se os ruídos pretendessem somente dissimular o silêncio.
Ingeria os sanduíches que ele mesmo preparava ou comida congelada do
supermercado. Se Gaspar optava pelos tais congelados, agia motivado por
questões meramente práticas. Sabia que o gosto daquele tipo de alimento era
muitas vezes insosso e decepcionante, porém, ao menos aquilo evitava ter
trabalho em demasia na cozinha. Visitar o restaurante português aliviava um
pouco sua rotina. O garçom do estabelecimento já o conhecia, e, de costume, os
dois dispensavam alguns minutos confabulando acerca de trivialidades. Logo
depois, o cliente ocasional deliciava-se com a especialidade da casa: mariscos
acompanhados de vinho verde.
Foi ao retornar
do restaurante, em ocasião recente, que acabou deparando-se com o envelope de
cor escura no interior da caixa do correio. Há tempos recebia tão-somente as
mesmas correspondências gerais: duas ou três revistas, alguns periódicos,
contas de consumo e propagandas variadas. O envelope indicava postagem de
Londres, e como remetente trazia o nome da mulher que despertava nele
recordações angustiantes.
*
Ao espanto
seguiu-se a constatação de um desequilíbrio. Tudo desequilibrado, tudo
arruinado absolutamente. O esforço despendido durante décadas, em vão aquele
esforço para esquecê-la e encarcerar memórias e sentimentos, erguendo paredes
de silêncio. Tão logo encarou o nome de Celeste escrito no envelope, e
reconheceu sua caligrafia, tão logo compreendeu que ele segurava nas mãos o
passado redivivo, vestígios de certa circunstância que supunha já sepultada,
tão logo deduziu que a correnteza o carregaria ainda uma vez mais, Gaspar
estremeceu.
Os signos todos
daquele cotidiano construído de modo tão peculiar desconcertaram-se: Celeste
estava presente. Pela manhã, ela parecia testemunhar o sono solitário de Gaspar
no cômodo de cortinas beges e pesadas. Discretamente, dava a impressão de
acompanhá-lo às ocasionais caminhadas através do bairro de Higienópolis. Gaspar
confundia, assim, períodos diversos: o contemporâneo e aquele outro, o tempo
antigo vivido em Portugal. Celeste mantinha-se calada. Porém, Gaspar era capaz
de perceber o semblante de tez claríssima e o franzido característico da testa
que se manifestava quando ela imergia em pensamentos. Vislumbrava também o
roçar ligeiro da mão retirando os cabelos defronte aos olhos e o jeito de
sempre ostentar naturalidade. Celeste ressurgiu atravessando o véu
esbranquiçado que separava os tempos atuais daqueles anos longínquos,
causando-lhe perturbação.
*
O pai de Gaspar
dedicara-se durante alguns anos a cuidar de um jardim, dando preferência a
espécimes como o alecrim e o estragão. O espaço utilizado era diminuto, e
ficava entre o portãozinho de ferro e os degraus que conduziam à varanda. Ali o
velho Fernandez delimitara um retângulo de terra com tijolos, fazendo daquilo
um verdadeiro hobby. Tendo-se aproximado a velhice, e padecendo certa
debilidade física tão característica daquela fase, viu-se impossibilitado de
oferecer a atenção que o jardim necessitava. Logo as ervas daninhas
misturaram-se aos alecrins e estragões. Testemunhando como se desvirtuava
melancolicamente aquele trabalho, Gaspar supunha comprometer-se com uma
retomada do cultivo tão logo fosse possível. Talvez até mesmo pretendesse fazer
uso do descanso usufruído em seus anos de aposentadoria. Porém, os dias
transcorreram, e o retângulo de terra continuava exibindo aquele aspecto
deprimente. Gaspar preencheu a varanda com vasos, tencionando ludibriar a
própria consciência. Tampouco essa solução conseguiu aliviar o desgosto que lhe
causava tanto postergar.
Tempos depois de
haver recebido a correspondência, Gaspar decidiu que o momento de restaurar o
jardim chegara. Foi à loja de jardinagem, e trouxe consigo o material exigido:
adubo, sementes, ferramentas, pequenos exemplares dos espécimes desejados e até
um regador de alumínio. Por trás daquela agitação, estava ciente da existência
de outros objetivos: desvencilhar-se dos pensamentos que o conduziam
teimosamente a Celeste. Os costumes que ocupavam seu dia tinham fracassado lamentavelmente.
Toda a literatura dizia o nome daquela mulher e toda a paisagem encharcada de
São Paulo evocava recordações lusitanas. Celeste e a câmera fotográfica
captando detalhes de casarões, monumentos e antigos postes de iluminação de
Lisboa. Gaspar desesperou-se ao ser dominado daquela maneira, e supôs que o
exercício de recuperar o jardim pudesse ajudá-lo.
– Quase um
jardim europeu – exagerou, contemplando o trabalho realizado, e utilizando o
dito jocoso que o velho Fernandez repetia todas as vezes que encerrava os
cuidados periódicos.
Fatigou-se, era
bem verdade. O sol escondera-se atrás das nuvens e, não obstante, o dia
mantivera-se quente. Gaspar transpirara abundantemente. Usou o lenço muitas
vezes recolhendo o suor que descera pela testa. Antes de se dirigir ao banho,
esticou um derradeiro olhar para o jardim. Agradou-lhe novamente constatar o
resultado. O espaço recuperara aquele aspecto ordenado de antes, e talvez o
mais importante, com tal atividade Gaspar conseguira mitigar o efeito das
recordações, ao menos durante algumas horas.
Sob o esguicho
de água candente que jorrava do chuveiro, pretendeu reconquistar as energias
despendidas durante o esforço. Apetecia-lhe o ato de curvar-se, deixando que o
calor e a pressão massageassem-lhe as costas e o pescoço. Todo o corpo era
tomado por uma lânguida satisfação. O ritual costumava funcionar com razoável
eficiência, contudo, daquela vez, as energias tardavam seu regresso. Gaspar
deu-se conta de que as pernas amoleciam e os sentidos iam falhando devido à
vertigem. Apoiando-se na parede, conseguiu equilibrar-se de forma precária.
Como não estivesse acostumado a empreender esforços físicos, julgou que o
desgaste pudesse ter consequentemente ocasionado a debilidade. Por cautela,
sentou-se no piso, conservando a posição durante quase uma hora, até supor
estar razoavelmente recuperado. Depois de trajar-se, planejou fazer uma
refeição. Os sanduíches frugais ingeridos no almoço decerto não haviam sido
suficientes para conservar sua resistência.
Gaspar sempre
evitara criar cachorros em casa, e justamente por esse motivo, espantou-se ao
escutar os ruídos de um cão. Tendo chegado à varanda, viu um cocker de pêlos
rubros revolvendo o terreno do jardim. Tudo o que fora plantado tão cuidadosamente
encontrava-se espalhado numa aparência dolorosa. O cenário era realmente
terrível. Gaspar partiu em direção ao cocker disposto a enxotá-lo, mas ao agir
impulsivamente, esqueceu-se do desconforto padecido momentos antes. Conseguiu,
no máximo, esboçar duas ou três passadas. A dor que despontou no estômago foi
pungente ao extremo, e perdendo totalmente as energias, Gaspar caiu.
*
O médico
deteve-se avaliando os exames. Tratava-se de um tipo pesado, cujas bochechas
flácidas e descaídas exageravam o caráter circunspecto da aparência. Às vezes
aspirava demoradamente, e ajeitando os óculos, estreitava o olhar direcionado
ao paciente.
– O senhor é
casado? – questionou, pigarreando.
– Solteiro.
– Vive com algum
parente?
– Vivo sozinho.
– Sozinho?
– Exato.
Outra vez o
médico pigarreou.
– Certo, certo…
– vasculhou os papéis, encontrando a ficha com o histórico do paciente. –
Parece que o senhor está aposentado. Professor universitário, correto?
– Correto.
– Observo aqui que o senhor estava só em sua residência quando sofreu o
desmaio. Sendo preciso ter acompanhamento, no futuro, existe alguma pessoa
próxima que se responsabilize?
– Não existe ninguém.
– Compreendo – o
médico dedicou-se a fazer duas ou três anotações breves, agitando a caneta, de
quando em quando. Dando-se por satisfeito, retomou o diálogo utilizando outro
tipo de abordagem. – O que me diz a respeito das dores?
– Os analgésicos
que me receitou na semana passada aliviaram um pouco, mas confesso que ainda
dói de vez em quando.
– Vertigens?
– Às vezes…
ligeiramente, é bem verdade. Ontem estive deitado durante a tarde. Por precaução,
já que acordei indisposto.
O médico desceu
os óculos, encarando-o com cuidado: – Hoje se sente melhor?
– Pode-se dizer
que sim.
– Pois então
vejamos… – era já a segunda vez que o doutor perscrutava os exames que Gaspar
trouxera. Transcorridas duas semanas após a incidência daquele mal-estar, o
paciente continuava ainda às escuras. Falou-se do tumor, não obstante,
exigia-se a biópsia: somente ela determinaria a gravidade da situação. O médico
encerrou o suspense: – O resultado das análises constatou realmente um tumor maligno,
e lamentavelmente em estado avançado.
– Mas com o
tratamento… – Gaspar agarrou-se à derradeira esperança.
– O tratamento
não reverterá o quadro, Sr. Fernandez.
Fazendo uso da quimioterapia, sempre conseguimos estender o período de
vida do paciente. Mas, neste caso,
calculo que não passará de seis meses.
Gaspar
estremeceu ao tomar consciência do diagnóstico. Raramente fora acometido por
doenças desde o dia de seu nascimento, e daquelas que ele não pudera escapar,
nenhuma se mostrara excessivamente grave. Tivera gastrite, porém, disso se
curara tomando alguns cuidados. O pai falecera vitimado por um acidente
vascular cerebral, mas aquela fatalidade sucedeu-lhe quando alcançava já
oitenta e tantos anos. Isto fizera com que Gaspar descartasse o risco de
enfermidades genéticas. Logo, a notícia daquele tumor em situação bastante
avançada vergou suas convicções.
Restavam-lhe,
então, apenas seis meses. Um processo irreversível, a despeito do uso de
remédios e do tratamento quimioterápico – métodos necessários para aliviar o
sofrimento. Gaspar percebeu que o tumor corroía de modo insidioso, e só o que
lhe restava fazer era retardá-lo temporariamente. Que destino melancólico… Controlar as dores e o desgaste corporal,
agarrando-se, resignadamente, ao que sobejava das energias vitais.
Tendo regressado
ao sobrado, em noite já avançada, agasalhou-se na penumbra do seu escritório. O
estado de saúde conhecido através daquele diagnóstico chocara-o, e
encontrava-se atônito e calado. Quando decidira esquivar-se da cátedra
universitária, dedicando sua velhice ao deleite de páginas e páginas de grandes
escritores, jamais antecipara mentalmente a possibilidade daquele tumor.
Encolheu-se no sofá, incapaz de qualquer movimento. Tudo parecia estagnado.
Tudo chegando a algum momento decisivo e estarrecedor. Cada minuto esvaído
significava o prazo de seis meses esgotando-se. Todos escorriam astutamente,
como grãos de areia delgados. Supôs que talvez conviesse recorrer aos volumes
acumulados em suas estantes, abrindo ao acaso, este ou aquele, movido pelo
objetivo de fruir conselhos, como se a poesia ou a ficção tivessem o poder de
serená-lo em tal situação. O caráter oracular da literatura, entretanto, não
foi capaz de convencê-lo.
Talvez a lembrança de Celeste pudesse
consolá-lo. Celeste cujas feições ele desejara retirar da memória, escondendo o
passado debaixo da terra escura do jardim, conservando tudo emudecido como se
representasse, de fato, um grande perigo. Semanas antes, Gaspar deixara-se
surpreender, dentro do cômodo, pelo espectro daquelas tantas recordações, e não
somente no cômodo, mas também nas calçadas, durante as andanças de costume.
Celeste evocava tempos dolorosos. Numa tentativa desesperada de conter aquela
situação, guardara o envelope intacto dentro de uma gaveta de sua escrivaninha.
Como permitir que Celeste lhe dirigisse a palavra outra vez? Tantas décadas
depois, seria desastroso.
2.
Celeste
confessou: – Adoro-te. Teu queixo, teus lábios, teus cílios, teus olhos. – Logo
em seguida, aconchegou a cabeça no peito desnudo de Gaspar, e disse: – Os teus
olhos são peixes verdes.
Com o sol
declinando para além do oceano, só a eles e às gaivotas pertencia a paisagem
litorânea. Os pássaros esboçavam vôos acrobáticos de movimentos tão
extravagantes que era impossível antecipá-los. Pousavam todos momentaneamente,
distribuindo-se sobre o areal como anjos irrequietos. Gaspar gostou de perceber
como a pele de Celeste ousava outra tonalidade. Após quatro dias no Algarve, a
palidez trocara-se pelo bronze discreto que sua constituição aceitava. Os
cabelos espalhavam-se em cima do corpo de Gaspar, e este compreendeu que a
jovem adormecera. À noite, pretendiam descansar no hotel onde se encontravam
hospedados e, ao amanhecer, pegariam a estrada de retorno a Lisboa.
Os teus olhos são peixes verdes, Celeste
dissera, citando o verso do poeta cujo livro dedicava-se a ler.
Gaspar ergueu
ligeiramente o pescoço desejando observar os pesqueiros que, no horizonte, já
se adiantavam ao trabalho noturno. O movimento fez com que Celeste
interrompesse o descanso, e o encarasse com expressão inquisidora. Os olhos
esverdeados da jovem rutilavam.
– Os seus olhos
também são peixes verdes – ele disse.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).