– Confesso que entre mim e o seu marido nunca existiu contato. Foi através do noticiário que acabei tomando conhecimento desse caso trágico... Me refiro ao suicídio do doutor Aristides, naturalmente – o detetive observa a cantora com o intuito de flagrar sinais de abatimento, não obstante, a morte deixa de suscitar nela a sensação imediata de horror. Sasha Menezes parece resignada ou meramente insensível. – Mesmo assim, recentemente me aconteceu descobrir que seu esposo manteve em posse algo que durante certo tempo me pertenceu...
– Isso me surpreende – diz a cantora.
– Por quê?
– Durante anos convivi com Aristides, e sei perfeitamente que ele era bastante exigente. Gostava de mesas reservadas em restaurantes, lugares exclusivos nos teatros, roupas finas, carros de último tipo, viagens de primeira classe, e não costumava compartilhar o uso das coisas. Me diga então, neste caso, detetive, que interesse teria ele de utilizar algo que pertenceu antes a outra pessoa? Isto é um absurdo!
– O interesse eu não saberia definir, senhora Menezes. Por isso solicitei essa conversa.
– O objeto... Penso que seja um objeto...
– Sim. É um objeto de uso pessoal, algo bastante particular.
– Que seria?
– Uma carteira.
– Posso vê-la? – a cantora estende a mão.
– Sem dúvida.
O detetive entrega a ela. De imediato, algo sucede na expressão de Sasha Menezes, certa mudança significativa que dissipa a dureza insensível de antes, trocando isso pela turbação momentânea. A cantora reage finalmente, mostra instabilidade, como se houvesse uma rachadura na superfície artificial de sua aparência. Os músculos da testa contraem-se, os lábios apertam-se de forma contundente, e ela estremece de modo ligeiro, embora o bastante para ser notado.
– A senhora reconhece? – Santa Rosa questiona.
– Sim.
– Esteve com seu marido, não é?
– Eu admito realmente que Aristides chegou a usar esta carteira.
– Me diga, senhora Menezes, será que, em alguma circunstância, teve a oportunidade de abri-la?
– Para ser sincera não.
– Gostaria de fazê-lo agora? – ele sugere.
– Sem dúvida.
Outra vez a expressão de Sasha Menezes modifica-se, revelando algo de penetrante no semblante da cantora ao constatar a gravação interna no couro da carteira.
– É o seu nome – ela afirma.
– Isto mesmo. Agora observe, senhora Menezes, que seu marido não apenas utilizou algo que pertencia a outra pessoa, contrariando os costumes dele, mas também agiu assim sabendo que ali existia uma inscrição delatando essa circunstância.
– Percebo agora.
– Poderia me esclarecer uma coisa? – o detetive solicita.
– Mas é claro.
– Como essa carteira chegou ao doutor Aristides?
Ela sorri, e o sorriso ardiloso e desvelado dissipa o resto da camuflagem.
– Foi um amigo de Aristides quem ofereceu a ele essa carteira.
– Como presente?
– Eu não diria isso.
– E então...
– Para ser sincera, eu nunca entendi bem o tipo de relação que os unia em amizade. O amigo apareceu de repente, nos visitou uma vez uns meses atrás. Veio jantar, e depois daquilo acredito que ambos se encontraram em ocasiões diferentes, provavelmente em outros lugares. Não suponho que tratassem de negócios e também não imagino que o homem fosse um dos clientes de Aristides. Parecia haver entre os dois um vínculo íntimo e, pelo que me consta, não fui exatamente convidada a participar da intimidade dessa relação.
– Posso saber como essa pessoa se chama?
– Aristides se dirigia a ele sempre chamando de Conde.
– Esse é o nome?
– Talvez seja – a cantora responde.
– E como descreveria o Conde? – Santa Rosa pergunta.
– Um tipo extravagante, eu diria no mínimo. Tinha ideias estranhas, me incomodou lidar diretamente com ele. Pareceu ser culto, acredito que ele tenha viajado bastante, corrido o mundo inteiro – a cantora responde. – Fisicamente atarracado. Magro. Cabelos cortados rente à cabeça. Firme de corpo sem parecer exatamente atlético.
– Por que disse que ele tinha ideias estranhas?
– Depois do jantar, acomodados na sala de repouso, o Conde sugeriu que Aristides e eu participássemos de um jogo que, naquele momento, me pareceu um tipo de encenação. A ideia consistia basicamente em trocarmos de identidade durante certo tempo. Sou uma artista de palco, e não digo que assumir outra personagem esteja distante do que estou acostumada, mas Aristides sempre se mostrou um homem sério e pragmático, nunca afeito a situações dessa natureza. Sendo assim, supus que ele não aceitaria a proposta, no entanto, o fato é que terminei surpreendida. Meu marido acatou a sugestão de imediato, e procurou desempenhar o papel com diligência, assumindo uma identidade que jamais foi a dele. Porém, antes de começarmos, o Conde afirmou ser conveniente termos um símbolo de realidade capaz de garantir a estrutura do jogo, algo que servisse como totem. Ele utilizou exatamente esse termo: totem. Foi nesse momento que apresentou a carteira, ela seria nosso totem, e deveria ficar em posse de Aristides durante a encenação. Garanto que eu particularmente não toquei na carteira, somente Aristides teve permissão. Me recordo que ele observou o totem com gravidade, analisou o exterior e o interior, e deve ter reconhecido que se tratava decerto de um artigo elegante. Desse modo, tudo começou. O Conde dirigiu a encenação: Aristides deveria encarnar inicialmente um tutor de atitudes conservadoras, o católico tipicamente tradicionalista, cheio de moralismo e severidade, em contrapartida, eu assumiria a postura de uma estudante universitária, algo ingênua e inexperiente. O curioso é que não existia nunca exatamente um roteiro. O Conde ia orientando as coisas, insinuando algumas situações, estimulando conflitos e debates, e embora eu tivesse achado muito confuso, de início, logo me envolvi totalmente no jogo, e comecei a considerá-lo estimulante. Creio que Aristides também estivesse se comprazendo, mas de uma maneira diferente, sendo rigoroso, por exemplo, cumprindo fielmente o papel designado, se submetendo aos desígnios do Conde de modo absoluto. Houve mudanças de personagens, em determinado momento, e Aristides deixou de se apresentar como católico conservador, se tornando um degenerado afeito a compromissos com mulheres de caráter leviano. E a mim me coube assumir a carapuça desse tipo de pessoa. Isso naturalmente foi um choque, porém, como aceitara participar daquilo, decidi encarnar a tal personagem que, diferente da anterior, tinha uma alcunha específica. Conforme a cena ia se desenrolando, o convidado de Aristides fomentava nele um comportamento mais agressivo, dominador, dando a entender que àquele indivíduo degenerado cabia o papel de macho dominante. Portanto, eu deveria me comportar como uma fêmea submissa. Como da vez anterior, meu marido cumpria fielmente o acordo, agindo com arrogância e me tratando rudemente. Eu, sem coragem de abandonar o jogo, suportava tudo, me esforçando por admitir uma tolerância que não é da minha natureza. Mas a verdade era que eu me encontrava já exasperada com a excentricidade do Conde, e não compreendia bem por que motivo Aristides se permitia dirigir tão tranquilamente. Por isso, em dado momento, argumentei um desconforto estomacal, e deixei a sala com o intuito de repousar no meu cômodo particular.
– E a carteira? – o detetive indaga.
– Honestamente, supus que Aristides devolveria o totem ao Conde, porém, algum tempo depois, aqui em casa, tive a oportunidade de ver a carteira sobre a mesa de trabalho do meu marido – responde a cantora. – Isso me desconcertou um tanto, recordar as encenações daquela noite, a figura extravagante do tal sujeito, a mudança de postura do Aristides...
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).