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sábado, 30 de junho de 2018
domingo, 24 de junho de 2018
OS PARADOXOS DA FORMAÇÃO PSICANALÍTICA
Sabendo-se que Sigmund Freud estabeleceu
as bases da psicanálise sem necessariamente vinculá-la ao status acadêmico, nem
tampouco limitá-la ao âmbito da medicina, é natural que sempre tenha estado em
debate o modo como são formados os psicanalistas. Que eles não se formam nas
universidades, isso está evidente, e mostra decerto que a psicanálise deseja
conservar-se liberta das fronteiras muitas vezes repressivas do meio
universitário. Que eles podem ser encontrados em outras profissões, além da
atividade médica, isso também foi estabelecido claramente por Freud em seu
trabalho A Questão da Psicanálise Leiga.
Tendo inaugurado uma ciência original, e tencionando manter seu estado de
liberdade, o pai da psicanálise concebeu um método também único de formação.
Para ele, o psicanalista precisa vivenciar em sua própria existência os
resultados do método analítico, ou seja, é imprescindível que seu subconsciente
seja escrutado, de preferência por outro profissional mais experiente,
trazendo à tona as verdades ocultas em sua psique, e experimentando, na
prática, o processo de transferência. Sem dúvida, é importante que o
psicanalista em formação obtenha o conhecimento teórico das obras legadas por
Freud – e de outros analistas relevantes –, e seja acompanhado por uma
supervisão competente. Todos esses três elementos formam o chamado tripé
psicanalítico.
Para além da questão formativa, é
relevante levarmos em consideração que o psicanalista deve ter em sua
personalidade características essenciais para a atividade analítica. Por
exemplo, um espírito investigativo capaz de escrutar o inconsciente do analisando
de forma a extrair dali aquilo que elucide e cure suas neuroses, e disso se
depreende também um forte compromisso com a verdade. De modo semelhante, é
imprescindível que o psicanalista demonstre uma aptidão natural para empreender
pesquisas em áreas intelectuais paralelas como a antropologia, a literatura, a
religião, a simbologia, etc. Boa parcela dos estudos publicados pelos
psicanalistas mais renomados trata de abordar a psicanálise em contato com
essas áreas próximas, e isso então nos compromete a estudá-las com interesse.
Por fim, cabe igualmente desenvolver um sentimento de profunda humanidade,
afinal, como Sigmund Freud mesmo afirmou, a psicanálise foi criada com o
intuito de aliviar o sofrimento psicológico das pessoas. Isto significa que a
vocação do analista necessita estar amparada por um olhar de real compaixão
dirigido ao outro. Tais características não são exatamente oferecidas no
processo formativo de um curso – embora sejam sugeridas vivamente.
Provavelmente algumas delas são parte integrante da natureza do indivíduo que
busca formar-se psicanalista, e outras precisam ser buscadas por um empenho no
estudo constante da temática.
A questão da formação psicanalítica
adquire contornos diferentes com o trabalho de Jacques Lacan. Sua atuação no
âmbito da psicanálise suscitou um retorno aos conceitos originais expostos por
Freud e, ao mesmo tempo, uma ruptura com o establishment psicanalítico. Quem
deveria autorizar o psicanalista? Que grupo ou instituição estaria
suficientemente apto a decidir isso? Para Lacan, somente o próprio psicanalista
teria a condição de a si mesmo se autorizar. O psicanalista só se autoriza por si mesmo, ele assevera, retirando
de qualquer instituição a autoridade suprema de determinar quem pode ou não
pode ser psicanalista, e dessa maneira protegendo a psicanálise contra um risco
de recalque que decerto preocupara Sigmund Freud. Mais tarde, Lacan acrescenta
a essa mesma sentença as seguintes palavras: e por alguns outros. Ora, isso aparentemente constitui uma contradição,
afinal, se o psicanalista só se autoriza por si mesmo, como conciliar essa
autorização com a necessidade de outros? Trata-se de um paradoxo de resolução
bastante complicada. Se por um lado a si mesmo se autoriza, por outro lado
precisa daqueles a quem se submeterá em um processo de análise pessoal –
vivenciando o fato da transferência – e também em um trabalho de supervisão que
o aconselhe nos atendimentos.
Cada analista tem sua história de
formação, sua trajetória na psicanálise, seu estilo pessoal, sua abordagem, seu
modo de oferecer auxílio terapêutico ao analisando. É importante recordar que o
psicanalista nunca encerra totalmente a formação, de fato, o formar-se
psicanalista é uma tarefa permanente que não se fecha ao receber algum
certificado. Também a análise pessoal ou a autoanálise consiste em algo que
muito provavelmente acompanhará o psicanalista durante toda a sua existência,
sobretudo considerando que ao lidar com analisandos, surgirão sempre
questionamentos que confrontarão o profissional. Portanto, nunca se deve buscar
o ideal da realização psicanalítica neste ou naquele indivíduo como um elemento
constatável ou como um documento – um diploma, por exemplo – que possa ser
averiguado. A estrutura que os cursos oferecem são meios convenientes, mas o
processo que conduz um psicanalista a autorizar-se deve prosseguir durante todo
o caminho daquele que se dedicará à prática psicanalítica. Tendo colocado essas
observações, termino evocando uma situação sugestiva: ao estabelecer o diálogo
como método de conhecer o inconsciente e, dessa maneira, curar as neuroses,
Sigmund Freud aproximou a psicanálise mais da filosofia, afastando-a talvez dos
procedimentos médicos que se baseiam na terapêutica de ordem fisiológica. Tal
circunstância nos conduz a recordar que a psicanálise, como seu próprio
fundador desejou, não deve se manter circunscrita à medicina. Ela é também um
ciência leiga.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas) e O Arcano da Morte (romance).
domingo, 17 de junho de 2018
segunda-feira, 11 de junho de 2018
MEDITAÇÕES SOBRE DIVERSIDADE CULTURAL E XENOFOBIA
1.
Por natureza, o homem busca viver em sociedade, e essa existência social exige o desenvolvimento de uma cultura. Há considerável variedade de culturas, e elas manifestam-se de inúmeras maneiras, algumas sobrevivendo durante um tempo considerável, outras desaparecendo na poeira da história. Certas culturas deitaram tamanha influência em boa parte das civilizações que temos consequentemente a impressão de que foram capazes de alçar-se sobre as demais, ainda que a ótica do relativismo cultural receie atribuir a esta ou aquela específica características de superioridade. Sem dúvida, o conceito de superioridade da raça ariana suscitou o surgimento do nazismo na Alemanha, mas não deixa de ser verdadeiro que algumas culturas conseguiram elevar o nível das sociedades humanas, como mostra o caso da Grécia Antiga. A filosofia grega foi capaz de marcar profundamente não apenas o Império Macedônico: também se tornou relevante para a construção intelectual do cristianismo e do Islã. Quando estudamos a história do direito, analisamos mais detidamente a contribuição romana, e ao agirmos assim realizamos uma escolha. Por que o direito romano tem tanta relevância e não o código de Hamurabi, por exemplo, ou a lei do talião ou a sharia muçulmana? Pode-se argumentar que o direito ocidental dependeu essencialmente da contribuição latina, no entanto, devemos admitir que a escolha pelo direito romano se baseia em uma concepção de superioridade também, ou seja, compreendemos que a aplicação das leis dentro da perspectiva do Império Romano revelou-se mais eficiente e justa na tarefa de organizar legalmente a sociedade. Isso mostra um traço superior dos romanos que exige ser admitido sem esquecermos o fato de que o Império manteve um domínio severo sobre diversas nações.
Porém, observar a questão dentro de uma ótica civilizacional não é o suficiente, afinal, cultura é algo que se refere aos indivíduos. Se nascemos em um contexto cultural com chances consideráveis de exercer influência histórica – como foram os contextos grego e romano – ou se nos coube ter nascido em uma situação cultural menos influente – como a situação dos índios tupi-guarani ou dos aborígenes australianos – o fato é que, de uma forma ou de outra, sempre herdamos uma cultura, e isso é um elemento formador do nosso caráter. Mas o que é a cultura? A história de um povo é composta de uma determinada quantidade de elementos como o idioma, a literatura, a religião, as tendências políticas, as estruturas econômicas, etc., e esses elementos, sendo predominantes, formam uma cultura. Ser oriundo de uma circunstância significa carregar consigo essa herança cultural, e significa também desenvolver determinadas características concernentes aos indivíduos pertencentes a essa situação. Neste sentido, ainda que alguém herde historicamente a contribuição de gregos e romanos, isso não o torna mais valioso nem superior aos indígenas brasileiros ou aos aborígenes australianos. Ou seja, não existe mérito pessoal no mero fato de receber no nascimento certa cultura como legado, a menos que o indivíduo seja, ele próprio, suficientemente capaz de acrescentar a essa cultura uma contribuição pessoal valiosa, dignificando-a com seus talentos.
A diversidade cultural, se nos oferece a oportunidade de conhecer a humanidade em seus mais variados aspectos – o que é certamente vantajoso para o campo investigativo –, também ocasiona um choque nem sempre confortável. Pois cada cultura estabelece uma visão particular do mundo, e cada visão de mundo deseja ter o monopólio da verdade. Para os judeus, só existe um Deus (Yaveh), e todas as outras divindades correspondem à idolatria. Para os cristãos, Jesus é o messias aguardado pela tradição judaica, o redentor da humanidade, e não existe salvação a não ser Nele. Para os muçulmanos, o judaísmo e o cristianismo são meras fases transitórias no processo de revelação divina cuja culminância se dá com o nascimento de Maomé e com o advento do Corão. Um estudioso sério deve observar as três principais religiões monoteístas com o intuito de conhecê-las mais a fundo, sem que isso necessariamente produza um choque. Porém, esse espírito investigativo, que se aconselha seja alheio à intolerância, nem sempre é compartilhado pelos adeptos dessas religiões. Toda crença religiosa professa uma verdade, e embora o relativismo seja utilizado dentro de uma perspectiva intelectual, não encontra semelhante receptividade na esfera da fé, ou seja, a fé dos judeus, cristãos e muçulmanos se demonstra única e inconciliável. Desse modo, não chega a surpreender que no choque das civilizações ocorram conflitos.
Quando o problema da diversidade cultural é abordado, a isto se atrela outra questão relevante: a tolerância. Utiliza-se atualmente esse tema dentro das esferas políticas, ideológicas, sociológicas, filosóficas, etc., sempre na tentativa de alcançar a boa convivência entre pessoas de culturas diferentes. No intuito de constituir uma sociedade pacífica, a compreensão das diferenças humanas é incentivada, fomentando-se igualmente esse espírito de tolerância. Conquanto tais conceitos façam parte das discussões contemporâneas, a realidade é que as questões relativas à diversidade cultural e à tolerância no contexto da convivência social nos antecede em alguns séculos. Com o advento da Reforma Protestante e o surgimento posterior de inúmeras igrejas cristãs dissidentes, a cristandade na Europa chegou ao termo, e o catolicismo deixou de ser hegemônico. Tal fato suscitou um embate entre católicos e protestantes que ameaçava lançar o continente europeu em uma guerra religiosa sangrenta. Observando esse fato, o filósofo empirista John Locke escreveu o texto chamado Carta Acerca da Tolerância: “A tolerância para os defensores de opiniões opostas acerca de temas religiosos está tão de acordo com o Evangelho e com a razão que parece monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma luz tão clara.” Sua tese principal consistia em estabelecer um ambiente no qual as diferenças religiosas pudessem conviver com tranquilidade, respeitando-se o direito de cada denominação cristã. Se a divisão dos fiéis seguidores de Cristo não se apresentava como uma situação ideal – e os cismas geralmente eram encarados como fatos dolorosos na história do cristianismo –, ao menos desse modo promovia-se a tolerância entre os cidadãos.
2.
No livro Introdução à Sociologia, o autor Reinaldo Dias escreve a respeito da globalização:
“A cultura global emergente consiste em categorias e padrões universais pelos quais as diferenças culturais se tornam mutuamente inteligíveis e compatíveis. As sociedades ao redor do mundo estão a tornar-se, em alguns aspectos, mais semelhantes umas às outras. A emergência de uma cultura global vai aos poucos constituindo-se como um sistema de referências pelo qual as sociedades locais reinterpretam a sua cultura.”
Sem dúvida, devemos admitir que essa cultura global emergente – a globalização – tende a estreitar os laços entre pessoas de diferentes lugares, diminuindo as distâncias geográficas, facilitando a compreensão das variadas manifestações culturais, e isso se deve, sobretudo, ao avanço das tecnologias que, suscitando meios de comunicação avançados, constituiu a possibilidade de redes nas quais as relações se tornaram virtualmente próximas. Trata-se de um fenômeno algo revolucionário na história que foi antecedido milhares de séculos atrás por outros fatos semelhantes. Por exemplo, as navegações gregas expandiram horizontes, tornando possível o conhecimento de outros povos, situação que criou o cenário para o surgimento da filosofia. Também devemos evocar a expansão territorial do Império Romano, deitando sua influência sobre diversas nações que se mantiveram sob um domínio intenso. De certo modo, tais circunstâncias históricas representam o nascimento de culturas globais, naturalmente com as características peculiares de suas épocas. Na atualidade, como afirma o texto, as “sociedades ao redor do mundo estão a tornar-se, em alguns aspectos, mais semelhantes umas às outras”, o que significa dizer que os fatores da globalização tendem a homogeneizar os comportamentos. De fato, em várias partes do mundo, nós testemunhamos atitudes semelhantes de indivíduos que se encontram debaixo da ascendência de culturas politicamente dominantes, sempre capazes de disseminar seu estilo de vida através das indústrias da moda, do show business, dos movimentos ideológicos, do mercado editorial, etc.
Pode-se, no entanto, sempre recordar que o processo de globalização abole muitos valores culturais pertinentes aos países. Há naturalmente uma perda significativa da identidade de populações que estão sujeitas às influências de culturas dominantes, sobretudo as populações que habitam países cuja história nacional não se mostra tão antiga – como é o caso do Brasil. Principalmente as gerações mais jovens costumam deixar-se influenciar pelas tendências do momento, adquirindo hábitos e utilizando linguagens que não compõem as características da sociedade local. Com isso, se esquecem das próprias raízes, construindo identidades que não encontram referências dentro da circunstância histórica de sua nação. Tal fenômeno tem considerável possibilidade de criar instabilidade social, na medida em que, desaparecendo essa identidade comum e original, perdem-se consequentemente os laços que mantêm vinculadas as pessoas que compõem esta ou aquela população em particular. Se nós trocamos o que somos pela influência superficial de uma cultura estrangeira, muito provavelmente desfazemos os laços que nos vinculam aos outros indivíduos com quem compartilhamos o mesmo espaço geográfico. Desse modo, torna-se bastante difícil compreender o outro, e um povo que não compreende a si mesmo estará propenso a desuniões e conflitos.
3.
Ser estrangeiro, habitar uma nação diferente, muitas vezes desconhecendo as características singulares do local, tendo que se adaptar rapidamente a uma cultura desconhecida representa, às vezes, uma situação dramática. O sujeito que se arroja nessa aventura o faz motivado por razões variadas: a esperança de encontrar uma existência melhor, o sonho de estudar em universidades no exterior, as necessidades de uma determinada profissão, ou a situação limite da fuga territorial em que subsistam circunstâncias ligadas à guerra. Durante a Segunda Guerra Mundial, milhares de europeus cruzaram o Atlântico, encontrando abrigo em nações da América que os acolheram, tornando-os partícipes de sua história. No Brasil, colônias italianas, alemãs, espanholas, japonesas, portuguesas, etc., comprovam essa realidade. Atualmente, temos a oportunidade de testemunhar a crise de imigração que os europeus enfrentam devido à invasão muçulmana. Países em conflito no Oriente Médio, onde grupos radicais como a Irmandade Muçulmana e o Ísis atuam, não se mostram capazes de conter os combates recorrentes que vitimam a própria população, assim causando a fuga em massa de indivíduos que enfrentam os perigos de naufrágios no Mar Mediterrâneo, sempre na tentativa de conquistar uma vida segura em outro continente. Isso, ao menos, é o que recebemos como informação, ou seja, refiro-me aqui ao discurso midiático, ou então à posição dos governos, embora devamos também levar em consideração as observações pertinentes daqueles que afirmam não se tratar somente da fuga de um conflito bélico, afinal, uma onda considerável de imigrantes, como a que sucede na Europa, supõe a perspectiva de um processo de islamização.
Para além dessas questões migratórias, costumeiramente tratadas de forma demasiado genéricas, existe a experiência dos indivíduos em particular, daqueles que abandonam terra e tradição, família e sociedade, com o objetivo de habitar nações estrangeiras. Quando isso acontece, a pessoa troca os símbolos culturais que está acostumada por outros com os quais ainda não desenvolveu muita afinidade. O entendimento da realidade depende da afinidade com tais símbolos relacionados, por exemplo, ao idioma, à religião, aos costumes, ao trabalho, etc., e sem isso ocorre a sensação de deslocamento. A solidão é algo corriqueiro no decorrer desse processo, e quanto maiores forem as diferenças, também maior é a experiência de não estar completamente adaptado ao meio. Fazer de si mesmo parte integrante de um contexto social alheio às suas origens nunca se mostra tarefa simples, e além dos desafios particulares, há o preconceito daqueles que são cidadãos nascidos no território onde habitam atualmente os estrangeiros. Se por um lado existe o choque de quem está chegando, é suposto que exista, no comportamento dos cidadãos locais, o impulso no sentido de repelir o desconhecido. Uma e outra situação originam-se da experiência superficial do encontro. Havendo um aprofundamento nas relações, o estrangeiro se esforçará a fim de se adaptar ao novo contexto social, tornando-se parte integrante da cultura daquele país, enquanto o habitante local se esforçará também por compreender, em contrapartida, o estrangeiro não como um elemento adverso ou mesmo um invasor, mas sim como alguém perfeitamente capaz de contribuir para a nação, desse modo construindo uma história favorável.
Porém, devemos evocar aqui a possibilidade dessa contribuição estrangeira nem sempre ser assim tão favorável. Trata-se de certa circunstância em que um determinado grupo, conservando as características próprias de sua origem – sobretudo religiosa e linguística – pretender impor à nação que o recebe as características de sua cultura, suplantando as feições culturais do local. No ano de 2009, o governo francês lançou um programa de debates com os seguintes temas: “valorizar a contribuição dos imigrantes” e “compreender o que é ser francês hoje”. Desse modo, pretendia-se encontrar um justo equilíbrio entre a participação dos estrangeiros na sociedade francesa e a conservação necessária da identidade nacional. Com isso, pretendia-se que os indivíduos refletissem seriamente acerca do significado de ser um cidadão francês – nascido ali ou oriundo de outras partes do mundo. Passados quase dez anos, a questão migratória ganhou recentemente contornos dramáticos com o afluxo de árabes, refugiados de guerra que foram recebidos na França. Além do fatídico ataque terrorista ocorrido na famosa casa noturna, o Bataclan, em 13 de novembro de 2015 – um fato que causou comoção não somente na Europa, mas em muitos lugares –, existe também os debates candentes a respeito da perspectiva futura de haver uma sociedade francesa convertida aos ideais islâmicos. Sobre isso, o escritor Michel Houellebecq publicou um romance cujo título Submissão sugere a possibilidade de um candidato muçulmano se tornar presidente daquela nação. O cenário descrito por Houellebecq supõe não apenas o governo sob a direção da Irmandade Muçulmana, mas também uma rápida transformação cultural, com professores convertidos ao Islã assumindo cátedras nas principais universidades francesas, com o incentivo constrangedor ao uso da burca, e um clima de controle repressivo sobre o comportamento sexual dos franceses. Ocorre, dessa maneira, a suplantação de uma cultura por outra de fora, fazendo com que se perca a identidade nacional de um povo.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas) e O Arcano da Morte (romance).
domingo, 10 de junho de 2018
domingo, 3 de junho de 2018
STANISLAVSKI E A TEORIA TOPOGRÁFICA DE FREUD
Para
além dos conceitos puramente teóricos, a psicanálise é uma prática que não se
limita ao uso no consultório, e isso certamente a torna passível de ser
influente também em outros hemisférios. Sem dúvida, ela foi criada para tratar
de doenças psicológicas, mas suas estruturas introduziram-se em áreas da mais
distintas. Sigmund Freud popularizou termos como inconsciente, pré-consciente e
consciente, elementos constitutivos de sua teoria topográfica, esquadrinhando
assim a mente humana, e fazendo com que outras áreas do conhecimento
assimilassem, a posteriori, esses mesmos elementos. Isso demonstra a força de
tudo que esse médico austríaco concebeu, tendo enfrentado inicialmente bastante
resistência, e alcançando êxito após muito trabalho e persistência.
Lendo recentemente A Preparação do Ator, obra escrita pelo diretor de
teatro russo Constantin Stanislavski, encontro esse diálogo com o professor
Tórtsov:
“–
O subconsciente é inacessível ao nosso consciente. Não podemos penetrar nesse
domínio. Se, por algum motivo, o fazemos, o subconsciente se transforma em
consciente e morre... O resultado é um dilema: espera-se que criemos por
inspiração; só o subconsciente nos dá inspiração e, entretanto, parece que só
podemos utilizar esse subconsciente por meio do nosso consciente, que o mata.
Há, infelizmente, uma saída. Achamos a solução por um processo indireto e não
diretamente. Na alma do ser humano há certos elementos que estão sujeitos ao
consciente à vontade. Essas partes acessíveis podem, por sua vez, agir sobre
processos psíquicos involuntários. É claro que isto reclama um trabalho criador
complicadíssimo. Esse trabalho, em parte, é realizado sob o controle do nosso
consciente, mas uma proporção muito mais significativa é subconsciente e
involuntária. A fim de despertar o subconsciente para o trabalho criador,
emprega-se uma técnica especial. Temos que deixar à natureza tudo o que for
subconsciente no sentido total da palavra, dirigindo-nos, apenas, àquilo que
está ao nosso alcance. Quando o subconsciente, quando a intuição entra em nosso
trabalho, temos que saber como não interferir. Não nos pode criar sempre
subconscientemente e com inspiração – um gênio assim não existe! A nossa arte,
portanto, nos ensina – antes de mais nada a criar conscientemente e certo, pois
esse é o melhor meio de abrir caminho para o florescimento do inconsciente que
é a inspiração. Quanto mais momento conscientemente criadores vocês tiverem nos
seus papéis, maiores serão as possibilidades de um surto de inspiração.”
Nessa exposição, Stanislavski mostra a tradução em linguagem teatral de
termos relativos à psicanálise. Para atuar com qualidade, o ator necessita submeter-se
à inspiração, e essa tal inspiração depende de revelar-se o conteúdo do
inconsciente – ou subconsciente, conforme o texto –, de modo espontâneo, manifestando-se
depois de maneira consciente. Há uma força oculta na constituição psicológica
de todos os indivíduos, e sabendo-se utilizá-la convenientemente, é possível
transmutá-la em ato criativo. Sendo também o ator dotado de uma estrutura
psicológica complexa, ou seja, subdividida tal como Freud idealizou na sua
teoria topográfica, existe uma correlação entre inconsciente e consciente,
mediada pelo pré-consciente. No caso do processo de formação proposto por
Stanislavski, os conceitos psicanalíticos não se prestam exatamente à cura de
neuroses, mas sim ao aprimoramento do trabalho teatral, e isso então nos
demonstra que as descobertas freudianas não se limitam exclusivamente ao
processo psicoterápico, mas a toda uma gama de situações que transcendem o que
é usual.
Mais adiante, no texto, o professor Tórtsov ensina:
“A utilização do vapor, da eletricidade, do
vento e de outras forças involuntárias da natureza depende da inteligência do
engenheiro. O nosso poder subconsciente não pode funcionar sem o seu respectivo
engenheiro – nossa técnica consciente. Só quando o ator sente que sua vida
interior e exterior em cena está fluindo natural e normalmente, nas
circunstâncias que o envolvem, é que as fontes mais profundas do seu
subconsciente se entreabrem de leve e delas lhe chegam sentimentos que, nem
sempre, podemos analisar. Durante um maior ou menor período de tempo, eles se
apossam de nós, sempre que algum instinto interior os comanda. Como não
entendemos esse poder soberano e não o podemos estudar, nós, atores,
contentamo-nos em chamá-lo simplesmente natureza. Mas se infringirmos as leis
da vida orgânica normal e deixarmos de funcionar certo, então esse
subconsciente sensibilíssimo assusta-se e vai-se. Para evitar que isso
aconteça, planejem primeiro o papel conscientemente e depois representem-nos
com veracidade. A esta altura é essencial o realismo e até mesmo o naturalismo
na elaboração interior do papel, pois isto obriga o subconsciente a funcionar e
induz surtos de inspiração”.
Todo
o diálogo suscitado acima reafirma novamente aquilo que antes mencionei, a
saber: quando uma teoria revela-se bem-sucedida – e esse é o caso da teoria
topográfica da psicanálise –, dissemina-se pela sociedade, deitando influência
sobre outros ramos de atividade. Em sua viagem à América do Norte, no ano de
1909, Sigmund Freud teria dito a Jung: “eles não sabem que estamos lhes
trazendo a peste”, referindo-se às ideias revolucionárias que chegavam, então,
aos médicos norte-americanos. De fato, a psicanálise “contaminou” o debate,
talvez de um modo positivo, e desde seu surgimento podemos constatar em
diversas áreas do conhecimento o quanto isso é verdadeiro.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).
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