Há
mais de dois mil anos o prefeito da província romana da Judéia
questionava: Que é a Verdade? É possível que Pôncio Pilatos não
tivesse plena consciência da gravidade desta questão, e nem
tampouco estivesse interessado na história dessa problemática
fundamental. Mas o fato é que ele expressara em pouquíssimas
palavras a dúvida que desde sempre angustiou o homem. A busca pela
realidade, pelo verdadeiro é algo que perpassa o essencial de todas
as religiões, e alcança um grau de sofisticação intelectual no
pensamento grego: aletheia é o objetivo principal dos maiores
pensadores da antiguidade. De fato, só há filosofia propriamente
dita quando se almeja conhecer o real, aquilo que está por detrás
das aparências, do mutável, e que subsiste para além do
inconstante. Alguém que desconfie da existência da Verdade não
pode jamais compreender plenamente o sentido do exercício
filosófico, e nem tampouco realizá-lo, já que não havendo uma
Verdade todo questionamento tornar-se-ia infrutífero. Por que alguém
perderia seu tempo indagando sobre isso ou aquilo se não há nenhuma
possibilidade de se chegar a conclusões definitivas? A filosofia
subentende, portanto, a existência de algo real, imutável, e que,
além disso, possa ser conhecido pela razão humana na medida em que
esta encontra o caminho correto. Nos tempos atuais vemos que a
verdadeira vocação da filosofia foi muitas vezes vilipendiada, e
que determinadas linhas de pensamento incorreram em erros grotescos
como, por exemplo, supor que o mero questionamento represente o fim
último da pesquisa. A dúvida metódica cartesiana tornou-se a
ferramenta de investigação mais utilizada pelos modernos, não no
sentido proposto por René Descartes - ou seja, indagar para conhecer
-, mas sim como uma forma de afrontar as tradições, de destruir a
herança cultural do homem, e lançar a civilização no beco sem
saída do relativismo. Contudo, a tão afamada frase que diz "não
existe verdade absoluta" é uma farsa que não se sustenta, pois
todo aquele que admite tal coisa está, no mesmo momento, afirmando
algo de maneira peremptória, está constituindo uma verdade, e
tornando uma contradição aquilo que ele mesmo havia proposto. Deste
modo, podemos concordar que só existe filosofia porque existe uma
realidade imutável, e que filósofo é aquele que compreende a
existência do real, sente-se atraído por ele e dedica-se a obter
seu conhecimento pleno. Não é filósofo de fato aquele que duvida
da Verdade.
Através
de Sexto Empírico nos chegam fragmentos de um longo poema escrito
por Parmênides. Poucos pensadores fizeram tanto pelo estabelecimento
da Verdade como algo absoluto quanto esse pré-socrático, podendo
até mesmo se dizer que as bases do raciocínio lógico encontram
suas origens nas especulações de Parmênides. Segundo ele, um
objeto pode existir ou não, pode ser ou não, tornando-se
impossível, portanto, que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo.
Esse tipo de pensamento pode parecer estranho à primeira vista, já
que o mundo natural nos confronta continuamente com transformações,
paisagens que se modificam ao sabor dos ventos e dos tempos, seres
que nascem e morrem, coisas que, enfim, parecem existir agora e não
existir segundos depois. Essa confrontação entre o que é e o que
não é, entre o ser e o não ser, entre o âmbito do imutável e o
mundo das aparências é, sem dúvida nenhuma, o tema central da
filosofia grega, e Parmênides mergulha profundamente nessa questão.
Permanecer no devir e aceitá-lo como única realidade possível
seria aprisionar-se no relativismo, constatar a inexistência da
Verdade ou sua condição inacessível. De fato, a natureza revela-se
como um permanente ir e vir, um fatídico nascer e perecer de todas
as coisas, sendo compreensível a concepção do eterno retorno entre
os antigos, já que, ainda imersos numa cultura pouco desenvolvida e
tendo um conhecimento precário a respeito do sobrenatural, poucas
forças tinham para transcender a materialidade. É justamente disso
que Parmênides tenta fugir ao estabelecer a existência de um Ser
imutável, perfeito, imóvel e imortal. Não obstante seu monismo
estático parecer um tanto radical, o filósofo esforça-se por
preservar a possibilidade do conhecimento, a inalterabilidade do
real, e assim salvaguarda o ser humano de um mundo caótico e sem
sentido. Num dos trechos de seu poema, Parmênides descreve a viagem
imaginária que faz em busca da Verdade: "... as filhas do Sol
se apressavam por levar-me para a luz, depois de abandonarem a morada
da Noite e de com suas mãos terem retirado os véus da cabeça".
A jornada rumo ao conhecimento é, desta maneira, uma passagem da
ignorância para o saber, da escuridão para a luz, e apenas se nos
mostra justificável porque em seu término existe aquilo que não se
transforma nunca, que permanece sempre o mesmo, representando um
oásis de paz e satisfação para a nossa natureza angustiada e
indecisa.
A
filosofia revela-se, neste sentido, uma herdeira de toda a tradição
religiosa dos ancestrais. É sabido que depois de Hermann Diels e sua
obra máxima - Os Fragmentos dos Pré-Socráticos - o estudo
referente a esse período histórico desenvolveu-se de maneira
impressionante, proporcionando o surgimento de outros especialistas
de grande importância, tais como Werner Jaeger, Charles H. Kahn, F.
M. Cornford, Olof Gigon, G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, etc.
Atualmente não parece haver dúvida de que o pensamento grego foi
muito mais do que apenas uma superação da mitologia; a bem da
verdade, devemos entendê-lo como uma evolução das imagens
alegóricas do mito, um refinamento levado a cabo pela razão. De
fato, muitos dos conceitos encontrados na filosofia pré-socrática,
ou mesmo em Platão e Aristóteles, estavam já presentes na Teogonia
de Hesíodo e nas cosmogonias órficas, mostrando que os gregos não
desprezaram o conhecimento religioso, nem tampouco pretenderam
diminui-lo diante da pretensa superioridade de um racionalismo
semelhante ao defendido pelos iluministas. A filosofia helênica
representa, dentro daquilo que comumente chamamos revelação
natural, uma espécie de coroação da busca humana pela Verdade, a
mais bem acabada elaboração intelectual desenvolvida por um povo
cuja genialidade ousou tomar as intuições sobre realidades
sobrenaturais, despojá-las dos elementos meramente fantasiosos, e
apresentá-las num grau de pureza que até hoje nos espanta.
Estudando
as diversas crenças religiosas de forma comparativa, percebemos uma
constante que, certamente, antecipava essa busca humana pela maior
compreensão do real. Trata-se da prática de sacralizar lugares,
ofícios e relações. Na concepção arcaica o mundo se encontrava
dividido em dois espaços claramente definidos: a ordem e o caos, o
sagrado e o profano. Em História das Crenças e das Idéias
Religiosas, Mircea Eliade afirma: "... o território ocupado é
previamente transformado de caos em cosmo; em razão do rito, ele
recebe uma forma, e torna-se real". O primitivo é um homem
essencialmente religioso, e todo seu ambiente, sua atividade e sua
vida encontram-se marcados pelo selo inconfundível do sagrado. Fora
da sacralidade não se concebe nenhuma forma de existência; para
além do rito, do contato com a divindade, das práticas
purificatórias e das celebrações religiosas tudo é confusão e
sofrimento. Esse dualismo deve-se, principalmente, ao caráter
maligno que se atribuía ao conceito de caos. Em inúmeras tradições
podemos identificar o arquétipo de um tempo primordial, no qual
reinavam a ordem, a felicidade e a paz, cuja harmonia foi quebrada
pela ação de um ser maligno, pelo descuido de um deus desastrado ou
pelo pecado do próprio homem. Nas narrativas mesopotâmicas, por
exemplo, essa ordem é continuamente perturbada pela "Grande
Serpente". Na mitologia grega deparamo-nos com diversos relatos
sobre o mesmo tema: na Teogonia, por exemplo, referindo-se aos homens
existentes sob o reinado de Cronos, Hesíodo diz que ‘viviam como
deuses, com o coração isento de cuidados, a salvo de dores e
misérias’, até que essa divindade fosse destronada por Zeus, seu
próprio filho; também nos mitos de Prometeu e de Pandora repete-se
o mesmo tema, ou seja, o desafio lançado à ordem estabelecida,
tanto movido pelo orgulho quanto pela curiosidade, e que teve por
consequência o deflagrar-se da desordem, das dores e do sofrimento.
Sem dúvida nenhuma, o relato mais conhecido é aquele que se
encontra no Gênesis: ludibriados pela serpente, Adão e Eva tomam do
fruto proibido, desobedecem o mandamento de Deus, e são lançados
para fora do Éden, onde deverão padecer todos os infortúnios de
seu pecado. Aí está o tema do Paraíso perdido, tão comum na
história da humanidade e tão central na crença dos povos
primitivos. É possível que surja, neste momento, a questão: como
isso se relaciona com a busca pela Verdade? A fim de desvendar uma
problemática dessa natureza faz-se necessário mergulhar
profundamente no estudo das religiões comparadas, desvelar os
mistérios da psicologia de nossos ancestrais, compreender suas
agonias e esperanças, seus sofrimentos e consolações. Apenas assim
será possível entender o quanto nos encontramos ainda tão próximos
deles; elo mais recente desta cadeia, herdamos o mesmo fundo cultural
milenar, e padecemos as mesmas angústias, ainda que transmutadas em
formas modernas. Percebemos isso claramente no modo como os
ancestrais encaravam a perda desse estado paradisíaco: a falta
cometida perturbara a disposição original, afastara a divindade e
transformara em caos aquilo que antes era uma perfeita harmonia. É
justamente neste ponto que nos deparamos com o fenômeno da
sacralização. Para o homo religious viver num mundo caótico
representa sofrer todas as consequências do pecado; distante dos
deuses, da imortalidade e da bem-aventurança não lhe resta nada
além da amargura. Sobre os ombros do homem primitivo pesam o
ininterrupto devir, as agruras do tempo e, principalmente, a morte.
Pois o pecado privou-os da aliança com a divindade e fechou-lhes a
porta para a vida eterna. Imersos num mundo sem sentido, onde se
encontra ausente a harmonia primordial desejada por deus, nossos
ancestrais tentam desesperadamente recuperar aquilo de que foram
privados, e através de ritos conferem a lugares, objetos, ofícios e
relações o caráter de sagrado. Uma pedra sacralizada torna-se
diferente de todas as pedras existentes, por exemplo, não por algo
que seja intrínseco à sua materialidade, e sim por participar
daquilo que se entende por divino. Para além daquela pedra tudo é
caos e irrealidade; nela reinam, no entanto, a harmonia, o selo da
imortalidade e o mistério do sagrado. E assim chegamos ao ponto
essencial dessa relação que há entre as tradições religiosas e a
filosofia, no que tange à busca pela Verdade. Na visão primitiva só
é real ou existente aquilo que se encontra abrangido pelo âmbito do
divino. Ao chegarem a um novo sítio, a primeira providência tomada
pelos nossos ancestrais era a de erguer um altar, na intenção de
estabelecer ali uma ligação com as divindades, dando forma a um
território antes caótico. Ora, se é o divino que confere um
caráter ontológico ao mundo, se apenas ele pode ser considerado
intrinsecamente real - diferentemente do que está além, ou seja, a
irrealidade caótica -, disso deduzimos que nas tradições
ancestrais a Verdade foi, desde sempre, um atributo do sagrado.
É
em Platão que o laço se fecha ainda mais, unindo numa única
expressão os conceitos de Verdade contidos no pensamento religioso e
no filosófico. Para compreendermos isso tenhamos sempre em mente o
que foi exposto sobre as tradições primitivas: o divino é aquilo
que atribui o ser, a realidade às coisas e, sendo assim, apenas a
ele pode podemos conferir-lhe uma existência imutável, somente ele
é e continua sendo, a despeito do vaivém caótico da natureza.
Temos aqui, então, o conceito de que a verdadeira realidade reside
no sobrenatural, e que o mundo só pode ser considerado real na
medida em que participa da sobrenaturalidade. Assimilado esse tema
tão importante referente às tradições ancestrais, creio ser
possível aportarmos na Teoria das Idéias de Platão. Segundo o
discípulo de Sócrates, há um mundo superior, para além do mundo
material, no qual residem as Idéias. Tais Idéias são, de fato, a
verdadeira realidade, e seus correspondentes não são nada além do
que apenas um reflexo. Uma viagem pelos diálogos platônicos
revela-nos isso com muita clareza: tanto no Cármides, quanto no
Laques, no Eutífron e no Hípias Maior, após conduzir os
personagens por extensos debates sobre a temperança, o valor, a
piedade ou a beleza, Platão comumente os leva a compreender a
imprecisão desses conceitos humanos, mostrando que todas essas
coisas são, no entendimento e na vivência das pessoas, tão-somente
um reflexo das verdadeiras idéias de temperança, valor, piedade e
beleza. Muitos especialistas discutiram a respeito da correlação
entre o mundo Idéias e o mundo divino no pensamento de Platão,
chegando a conclusões diferentes. Não obstante, creio ser
inevitável admitir-se a similitude entre as tradições religiosas
primitivas e o idealismo platônico no que tange à questão da
realidade: ambos atribuem-na a um mundo que se encontra acima do
natural, para além da materialidade; além disso, concordam ao
afirmar que a Verdade (o real) é imutável e, portanto, absoluta, ao
contrário da natureza ou da opinião dos homens, sempre
inconstantes. Trata-se, enfim, da velha oposição entre doxa e
episteme. O pensamento de Platão efetuou uma identificação tão
perfeita entre a realidade e o mundo das Idéias, atribuindo a estas
últimas o caráter da imutabilidade, imortalidade e imobilidade, e
afastando definitivamente tudo isso do mundo material, que se chegou
a supor ser impossível atingir a Verdade através dos sentidos. De
fato, Platão não se cansava de elogiar o modo de vida teorético ou
contemplativo, mostrando a importância de se aperfeiçoar a alma - a
parte mais nobre do homem -, pois era, justamente, por meio dela que
se poderia contemplar a Beleza, a Justiça, a Amizade, ou mesmo o
Bem, a Idéia suprema, da qual todas as outras provinham.
Aparentemente, a filosofia platônica lançava toda a cultura numa
crise: se a Verdade só era alcançada pela busca espiritual,
tornava-se inútil qualquer forma de pesquisa experimental. A
resposta para esse dilema veio exatamente da Academia de Platão, por
intermédio de seu discípulo, Aristóteles.
O
Estagirita não se rebelou contra o conceito das Idéias, mas
discordou de seu mestre ao não situá-las num mundo diverso, onde
antes se encontravam absolutamente desligadas da natureza. Na visão
de Aristóteles, essas Idéias eram parte constitutiva dos seres
criados, sua verdadeira essência, aquilo que, não se transformando
nunca, permanecia constante mesmo após a extinção das forças
físicas. Desta forma, Aristóteles unia, novamente, o eterno ao
passageiro, o espiritual ao material, o sagrado ao profano. A Verdade
já não era um bem distante, a qual o homem só poderia atingir
através da contemplação; ela também estava na natureza, dando-lhe
substrato ontológico, realidade. Isso nos remete necessariamente ao
conceito de sacralização presente nas tradições ancestrais. De
fato, se analisarmos com cuidado, perceberemos que a linha de
pensamento é a mesma: a busca por algo imutável que subsista para
além do perecível, e que, unido intimamente a este, proporcione a
existência e a ordem a todas as coisas. Na especulação religiosa
essa união representava a renovada aliança entre a divindade e o
homem. Aristóteles não define isso com tanta clareza, mas é sabido
que sua filosofia serviu de base para a obra de São Tomás de
Aquino.
Deste
modo, chegamos bem próximo ao clímax da nossa jornada, a tal ponto
que o famoso questionamento de Pôncio Pilatos - Que é a Verdade? -
já não nos parece assim tão enigmático. A religião e a
filosofia, ambas em busca do real, e ambas conscientes de que isto
não poderia identificar-se intrinsecamente com a matéria perecível,
embora pudesse sim estar unido a ela, compartilhar de sua
constituição, de maneira presente e não imanente; de mãos dadas,
essas duas caminharam juntas procurando aliviar as angústias
humanas, amparando-se uma à outra, sempre tão ligadas e tão
mutuamente necessárias, que chega a ser risível a oposição entre
fé e ciência forjada pela modernidade. A religião olhando
ansiosamente para o alto, saudosa da felicidade perdida, e ardendo
por uma renovada aliança com a divindade; a filosofia recebendo toda
essa tradição, purificando-a de elementos imaginários, e dando-lhe
uma forma mais clara e racional. Ao final do período clássico da
Grécia antiga, ambas se haviam aproximado bastante da aletheia,
quase tocando-a, quase vendo-a na sua plenitude. Mas se afirmamos que
o divino é a Verdade tão procurada, temos que entender a limitação
da inteligência humana, só capaz de conhecer em parte esse
mistério. Buda, Sócrates e Moisés tiveram acesso, em maior ou
menos grau, a essa Verdade, contudo não se pode dizer que a tenham
possuído, nem tampouco que se identificassem com ela. De fato, na
história da humanidade, apenas um personagem ultrapassou essa
fronteira, oferecendo a resposta que Pilatos não foi capaz de
enxergar. É no capítulo XIV do evangelho de São João que Jesus
Cristo afirma a respeito de si mesmo: "Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai senão por mim". Todas as
perguntas mais fundamentais do ser humano, suas angústias,
esperanças e esforços convergiam na direção de Jesus, não apenas
como um objetivo, mas principalmente como seu centro. Tendo
compreendido esse fato com muita felicidade, Santo Agostinho escreveu
em A Cidade de Deus: "Se, de acordo com a opinião mais provável
e mais digna de confiança, os homens são todos necessariamente
infelizes, enquanto permanecem sujeitos à morte, torna-se preciso
procurar mediador que não seja apenas homem, mas também Deus, e por
intervenção de bem-aventurada mortalidade, conduza os homens da
miséria mortal à imortalidade feliz. Ora, semelhante mediador não
devia ser isento da morte nem permanecer para sempre seu escravo.
Fez-se mortal, sem enfraquecer a dignidade do Verbo, mas desposando a
fraqueza da carne. E não permaneceu mortal na carne, porque
ressurgiu dos mortos. Fruto de tal mediação é não permanecerem
eternamente na morte da carne aqueles cuja libertação teve de
operar. Era necessário, pois, que o mediador entre nós e Deus
reunisse mortalidade passageira e beatitude permanente, a fim de ser
conforme aos mortais no que passa e chamá-los do fundo da morte ao
que permanece". Em Cristo se realizava a mais perfeita união
entre Deus e sua criatura, renovando-se uma aliança rompida há
tempos. Aliança eterna, que se dá na pessoa e no sacrifício do
Filho, Aquele que toma sobre si toda a culpa do mundo e, aceitando
sofrer a violência, refaz a harmonia entre o espírito e a matéria,
as duas partes litigantes. Cristo é Deus e é homem em pacífica
comunhão, e dá-se a si mesmo aos irmãos a fim de que estes também
possam viver essa tão ansiada comunhão, antecipada nas tradições
primitivas pela prática de sacralizar todas as coisas. Cristo é
também Aquele que rompeu a barreira da morte, a ditadura do devir
ininterrupto, e abriu as portas para a imortalidade. Através Dele o
homem retorna ao Paraíso, recuperando sua maior felicidade, agora um
bem constante, não sujeito aos perigos do tempo. Sem dúvida alguma,
se o divino era a Verdade tão buscada pela religião e pela
filosofia, podemos afirmar, como disse São João, que Ele "...
se fez carne a habitou entre nós". E é por isso que, se antes
podíamos falar da Verdade como algo a ser conhecido em parte,
podemos hoje falar dela como aquilo que não somente podemos
conhecer, mas podemos também comungar.