Diz o poeta Mário de Sá-Carneiro nuns versos sem
título: “Eu não sou eu nem sou outro, Sou qualquer coisa de intermédio”. O
jovem nascido numa família de militares não fingia a dor confessada: naquela
personalidade corroía a angústia da afirmação do Ser. Apesar da origem
burguesa, jamais conseguiu adaptar-se às convenções sociais. Abandonou o curso
de direito na cidade de Coimbra, supondo encontrar em Paris a vida idealizada.
Qual vida? Talvez nem mesmo o poeta soubesse definir. O que lá encontrou foi uma
existência boêmia, em contraste absoluto com os desígnios originais – a viagem
de Sá-Carneiro, custeada pelo progenitor, tinha como finalidade concluir os
estudos na Sorbonne. O poeta sofreu as oscilações de uma personalidade
problemática, envolveu-se com uma prostituta, publicou livros que tiveram
excelente acolhida junto a um público sofisticado, agitou o meio literário
português lançando a revista O Orpheu – ao lado de outros escritores
modernistas, como Fernando Pessoa – e, em Abril de 1916, bastante jovem,
suicidou-se com estricnina.
Os versos de Sá-Carneiro expressam a aflição do autor
sem o subterfúgio de heterônimos. O que lá está é o poeta. Contudo, o tema que
neles encontramos é justamente a indefinição do ser, o dilema de perceber-se “qualquer
coisa de intermédio”. Seria impossível ler a obra de Sá-Carneiro e não
compreender o seu fervente desejo de plenitude. Quer ser completo, quer tudo
com profunda intensidade.
Quero ser Eu plenamente, confessa. Quer, portanto, o
ideal! Um dos principais fundadores do modernismo português revela assim sua
veia romântica. Sabe-se insatisfeito com a existência medíocre e relativa, vida
pela metade, diluída em satisfações fugidias.
Ser plenamente. O desejo de Sá-Carneiro não tinha,
porém, suficiente objetividade:
Quero
sentir. Não sei… perco-me todo…
Não
posso afeiçoar-me nem ser eu…
Que os poetas jamais se sentiram inteiramente
adaptados às circunstâncias do mundo, Baudelaire já o havia exprimido no seu
Albatroz. O jovem lusitano talvez experimentasse essa inadequação, não
encontrando na sociedade o lugar adequado, sendo obrigado a vestir o fato de
outro, como escreveu Álvaro de Campos. Seu ser íntimo não correspondia com o
ambiente ao redor. Sua vocação literária não se reconhecia em Coimbra ou na
Sorbonne, excedia o comum de uma rotina profissional. Portanto, Mário de
Sá-Carneiro projeta na obra poética a vida tão idealizada, supondo encontrar
ali:
Toda
a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda
a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos
os cenários que entretanto Fui…
Se o jovem era vítima da vocação artística, se se
movimentava desajeitadamente no convés da sociedade, repartido entre a
realidade estéril e os cenários projetados, é também preciso admitir que a
cultura vigente na Europa do período encontrava-se eivada por quase cinco
séculos de pensamento subjetivista, idealista, relativista e niilista. Não,
Mário de Sá-Carneiro jamais empunhou conscientemente tais bandeiras nos versos
que escreveu, jamais defendeu qualquer escola filosófica específica, mas ali
estava inegavelmente um homem do seu tempo.
Tempo de descrença profunda, que não por acaso
produziu a visão sombria do existencialismo.
O ser e o não ser reverberaram nos versos de
Sá-Carneiro, mas já se “estranhavam” há mais de dois mil anos no debate
filosófico. Pode-se afirmar, inclusive, que o pensamento dos gregos evoluiu a
partir dos problemas metafísico e ontológico, já desde os pré-socráticos até
Sócrates, Platão e Aristóteles – o ser claramente se identificando com a
divindade e o não ser com a contingência do material. A influência da Grécia na
formação da cultura Ocidental é inegável, e é inegável também que a teologia
cristã da Patrística e da Escolástica bebeu nessas mesmas fontes. As ideias de
Platão e o Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles se uniram à verdade revelada do
cristianismo, e o conceito de Deus como Ser em essência e da existência humana
como dependente do Ser de Deus tornou-se consequência necessária dessa
aproximação. O indivíduo existe porque Deus “é”, portanto, seu substrato
ontológico permanece garantido pelo Ser da divindade. Daí concluímos que a
existência do homem depende de um fator ab extrinseco, cuja manifestação na
criatura dá-se, não obstante, intrinsecamente.
Tão certo quanto haver a filosofia dos gregos e a
teologia dos cristãos estabelecido a origem do Ser em Deus, é a modernidade ter
de lá retirado com o objetivo de encontrá-la nos mais diferentes lugares. Já
Descartes afirmava que a realidade primordial do homem é o seu ‘pensar’:
Cogito, ergo sum… Penso, logo existo! Sim, é fato que ele, em última instância,
vai buscar em Deus sua garantia ontológica, mas é indubitável também que sua
conclusão existencial não parte da divindade, e sim do seu “pensar”. Se
Descartes é o pai do subjetivismo ou se o subjetivismo é a má interpretação de
Descartes, o fato é que a ruptura acontece: o “existo porque Deus existe” é
substituído pelo “penso, logo existo”. O existir fica dependente do sujeito pensante.
Outros filósofos ou correntes de pensamento se esforçaram, de maneiras
diversas, na tentativa de materializar o Ser. A História é a materialização do
Ser em Hegel, sua evolução dialética o modo como o Ser se desenvolve, e o
Estado sua plena realização. Sorvendo nestas fontes de Hegel, o socialismo
utópico entende que a sociedade atual ainda não “é” plenamente: será plenamente
só quando o estado socialista já não encontrar resistência. O conflito
existencial está, portanto, no cerne da cultura moderna, conclusão a que chega
Paul Tillich, no livro A Coragem de Ser.
O desejo que Mário de Sá-Carneiro expressa é o mesmo
que aflige os modernos: desejo de ser. Sente o impulso de sair de si, de
tornar-se outro, de encontrar a plena realização do eu. Como os utopistas,
projeta a realização num universo imaginário, esconjurando a realidade atual,
tão diferente da vida que lhe apetece viver:
Desfiles,
danças – embora
Mal
sejam uma ilusão.
–
Cenário de mutação
Pela
minha vida afora!
Sofre, no entanto, a desilusão. Thomas Morus já
explicara o significado da palavra utopia: lugar nenhum. O caminho para a
realização do ser não é a fuga da realidade, nem tampouco a idealização de um
destino hipotético, de uma vida imaginária.
Quando o indivíduo alimenta-se com
fantasias, acaba experimentando o sabor amargo do fracasso. Cedo ou tarde, o
mundo, tal como é, impõe-se forçosamente, e então sobra o lamento:
Quase
o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase
o princípio e o fim – quase a extensão…
Mas
na minh’alma tudo se derrama…
Entanto
nada foi só ilusão!
De
tudo houve um começo… e tudo errou…
–
Ai a dor de ser-quase, dor sem fim… –
Eu
falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa
que se elançou mas não voou…
O estado intermediário entre aquilo que “é” de verdade
e aquilo que pretendia “ser” torna-se um limbo. O indivíduo que ali permanece
vaga como as angustiadas almas do Hades. A fantasia está desfeita, o malogro
escurece completamente sua existência, como um corvo à espreita da morte
inevitável. Já desesperou de encontrar novos caminhos, pois se por um lado não
tem qualquer intenção de voltar ao que era antes, supõe também impossível
atingir a meta outrora sonhada. O nada é seu destino! Sim, o niilismo foi outra
das tendências daquele momento histórico. A completa ausência de significado na
vida conduzia à busca tenebrosa pela extinção total. Se o mundo não tem
sentido, se só o que existe é sofrimento, deve-se mergulhar no nada! Os
personagens de Dostoievski retratam perfeitamente tais indivíduos. Também Mário
de Sá-Carneiro optou pelo nada absoluto… O conflito do ser cansou-o ainda na
juventude. Seus versos antecipam o suicídio:
A
minha vida sentou-se
E
não há quem a levante,
Que
desde o Poente ao Levante
A
minha vida fartou-se.
Além das afinidades fraternal e intelectual, Mário
Sá-Carneiro e Fernando Pessoa compartilham a questão do ser. Quando são lidos
certos versos de Pessoa, comparando-os aos do colega, chega-se mesmo a imaginar
que, caso se atribuísse a autoria ao outro, até o crítico especializado
encontraria dificuldades de perceber o equívoco. Não pretendo começar aqui o
debate a respeito de quem teria sido influenciado por quem… O tema é espinhoso,
e exigiria pesquisas e espaço mais amplos. Da leitura de ambos os poetas fica, contudo,
a certeza de que, de modos diversos, travaram uma luta contra esse conflito do
ser, o primeiro expressando-se visceralmente e o segundo intelectualmente ou
metafisicamente ou, por que não, ironicamente. O poema intitulado Esta velha angústia, do heterônimo
Álvaro de Campos – de todos, aquele que vive o conflito de maneira mais radical
e mesmo histérica – fala por si:
Mas
não: é este estar entre,
Este
quase,
Este
poder ser que…
Isto.
Tema de complexidade semelhante ao de identificar
supostas influências exercidas de um poeta sobre o outro é determinar, com
exatidão, até que ponto o Fernando Pessoa encontra-se presente nos heterônimos.
Onde é que a realidade termina e onde tem início a ficção? O crítico literário
ou o apreciador dos versos pessoanos provavelmente jamais conseguirá chegar a
um consenso, pois há indícios de que o próprio bardo lusitano edificou a obra
no limite entre o real e a fantasia. O poeta é um fingidor, ele escreve. A João
Gaspar Simões, confessa: “O ponto central da minha personalidade como artista é
que sou um poeta dramático; tenho continuamente, em tudo quanto escrevo, a
exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis
tudo… O crítico sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto
despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo
automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo
na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso
sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente, me esqueci de
sentir”. São, portanto, ficções construídas sobre alicerces reais,
transmutações de si mesmo, variações a respeito do tema pessoano. Seus versos
confessam aquilo que “é” o poeta e também o que “não é”. Por isso o poema que
lá começava afirmando: O poeta é um fingidor… Segue dizendo: Finge tão
completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente.
Adolfo Casais Monteiro crê que o nascimento dos
heterônimos foi completamente espontâneo, não sendo um projeto delineado com
ampla sutileza de detalhes. Sua opinião é baseada na correspondência que
manteve com o poeta, e entendo ser bastante crível. Seja como for,
deliberadamente ou não, os principais heterônimos de Fernando Pessoa abordam a
problemática do ser e do não ser, sob aspectos diferentes, com perspectivas
também diferentes. Que o criador desses personagens fosse dono de uma formação
clássica – e não esqueçamos que a cultura clássica é, em essência, o dualismo
grego –, os estudiosos não têm dúvidas; daí é possível concluir que a temática
do ser e do não ser estava entranhada no seu pensamento.
Álvaro de Campos é, dos três, o que corporifica o
dualismo de modo conflituoso, tal como observamos. Quanto aos outros dois,
Alberto Caeiro e Ricardo Reis, aquele aparentemente vive a solução prática do
problema, enquanto este pretende a solução teórica. Fiquemos com Álvaro, de
início… Nos versos deste heterônimo identificamos mais semelhança entre Pessoa
e Sá-Carneiro. Seu criador ousa denominá-lo “o mais histericamente histérico de
mim”, pois o poeta a si mesmo se considera histeroneurastênico, com “tendência
orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação”. Ora, Álvaro
de Campos é a própria despersonalização e simulação, característica que compartilha
com Mário de Sá-Carneiro. O heterônimo deseja ser outro também, quer
desesperadamente se desvencilhar daquilo que é:
Na
casa defronte de mim e dos meus sonhos, Que felicidade há sempre!
Moram
ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São
felizes, porque não são eu.
Pesa-lhe sobre os ombros a impressão de ser um
falhado, de não haver alcançado um objetivo qualquer. Eis o lamento que está
presente na conhecida Tabacaria:
Fiz
de mim o que não soube,
E
o que podia fazer de mim não o fiz.
Aqui se manifesta aquela “qualquer coisa de
intermédio” de Sá-Carneiro, o mesmo “estar entre” que o heterônimo confessa. O
desejo de ser não é completamente realizado, obrigando o poeta a viver no limbo
da indefinição da personalidade. Também como Sá-Carneiro, no entanto, Álvaro de
Campos admite sequer ter um objetivo definido:
Falhei
em tudo.
Como
não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
Que não se diga, porém, ser Álvaro de Campos o
decalque desprovido de originalidade de Sá-Carneiro. Se o dilema que os
incomoda é o mesmo, se a fonte daquele mal-estar é compartilhada, a maneira
como ambos reagem mostra discrepâncias. Mário de Sá-Carneiro vive radicalmente
o inconformismo da inadequação, jamais se prostra diante da vida prática,
assumindo por completo a responsabilidade do êxito ou do fracasso. Quanto a
Álvaro, ser ou não ser é intelectualização, o heterônimo não tem a coragem de
experimentar, de fato, o radicalismo defendido em versos. Deseja “… ir ser
selvagem, entre árvores e esquecimentos”, pouco antes anseia abandonar lógicas
e sacadas, mas continua existindo como engenheiro. Sente o impulso e, logo em
seguida, o cansaço da realização. Seu aspecto abúlico – herdado de Fernando
Pessoa – manifesta-se em Adiamento, por exemplo, ou mesmo nos versos da Tabacaria.
Se para Mário de Sá-Carneiro a possibilidade do meio-termo não existe, e seu
dilema é angústia e radicalismo, para Álvaro de Campos ser radical exigiria
tomar decisões, coisa bem contrária à sua natureza, e por isso o dilema que
confessa, é somente angústia e conformismo:
Baste,
sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O
emissário sem carta nem credenciais,
O
palhaço sem riso, o bobo com grande fato de outro, A quem tinem as campainhas
da cabeça
Como
chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou
eu mesmo, a charada sincopada
Que
ninguém da roda decifra nos serões de província.
Sou
eu mesmo, que remédio!…
O mal sofrido por Álvaro de Campos é o de viver no
pensamento constantemente. Ali se percebe aprisionado por elucubrações, girando
sempre na vertigem do “quase ser”, do “querer ser”, do saber “não ser”. Quisera
sair da imaginação e mergulhar na realidade do mundo! O desejo de abandonar
todas as lógicas, deitar fora os fatos da sociedade a fim de ir “ser selvagem”
é seu lado romântico. Sabe, no entanto, que não basta somente “estar” próximo a
natureza, é necessário “ser” a natureza… O encontro com Alberto Caeiro
torna-se, então, acontecimento decisivo. Chama-o de mestre! Caeiro mostra-se o
ideal buscado por Álvaro, embora o conceito de idealismo esteja distante dos
versos bucólicos daquele mestre.
Que deslumbramento é, afinal, o que Alberto Caeiro
promove no poeta engenheiro?
O que encanta e surpreende o discípulo: a filosofia
antifilosófica, a metafísica antimetafísica do mestre, a perfeita comunhão,
comunhão pacífica confessada entre o poeta e a Natureza. Por não se pensar a si
mesmo senão como participante do Todo, Caeiro é o protótipo do ser liberto,
desprovido das amarras sociais, das tradições, da civilização tecnológica. O
ideal do movimento romântico manifesta-se naquela personalidade, e o mestre
conhece “naturalmente” o “… ser selvagem, entre árvores e esquecimentos”, que
Álvaro de Campos não conhecerá jamais. Pois se Álvaro sabe-se um prisioneiro
das próprias reflexões e também da sociedade, Caeiro não sabe senão o
esquecimento de si, sendo espontâneo como a tempestade e o amanhecer:
Procuro
despir-me do que aprendi,
Procuro
esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E
raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar
as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me
e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas
um animal humano que a Natureza produziu.
Caeiro não se encontra, portanto, preocupado com
desvendar “… o sentido íntimo das coisas…”, nele não há despersonalização, nem
tampouco o desejo de ser outro. Seu existir é no agora, seu fruir é no tempo
presente, sentindo o perfume das flores quando há, e não desejando sentir
quando não há. Desejo e realidade nele compartilham o mesmo idioma, caminham
juntos, e Caeiro não compreenderia o idealismo do querer “deixar de ser” e
projetar, no futuro, a felicidade que já está disponível. Carpe diem,
dir-se-ia. Quem sabe… Mas o poeta não compreende filosoficamente, senão
naturalmente. Vive sem o conflito do pensar, segundo admite: “Acho tão natural
que não se pense”. Crê em Deus? Se Deus identificar-se com a Natureza… Para
além disso, Caeiro prefere não cogitar.
Significaria, caso o fizesse, perder o presente e não
conquistar nada de realmente confiável. “Para mim pensar nisso é fechar os
olhos / E não pensar”. Contudo, o mestre rejeita a alcunha de materialista.
Rejeitaria se o aproximássemos da espiritualidade franciscana? Sim,
provavelmente… S. Francisco de Assis experimentava, de modo transcendente, o
contato com Deus na natureza; Alberto Caeiro, por seu turno, aquilo que
experimenta, experimenta no âmbito da pura imanência.
O curioso deste heterônimo é o destino dado a ele por
Fernando Pessoa. Se Caeiro significava a solução da problemática “ser e não ser”,
nele inexistindo os intermináveis dilemas existenciais de Álvaro de Campos,
Mário de Sá-Carneiro e, decerto, do próprio Pessoa, como explicar que também o
poeta bucólico acabasse caindo, ao final, na prisão do pensamento? Os poemas do
Pastor Amoroso revelam Caeiro abandonando a vida imediata para envolver-se nas
teias da própria interioridade. O amor… O amor tira o poeta do mundo natural, e
o aprisiona no pensamento. Sonha aquela que é objeto do seu desejo, projeta sua
figura no espaço, troca a realidade pela imaginação:
Amar
é pensar.
E
eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não
sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho
uma grande distracção animada.
Outro verso do Pastor Amoroso diz:
Como
o campo é vasto e o amor interior…!
Rompe-se a comunhão estabelecida entre o poeta e a
Natureza. Seu ser desencontra-se com o ser das coisas, e o diálogo que antes
era harmônico, torna-se dúbio. Caeiro já não sabe com a mesma distinção o mundo
físico, porque o amor transformou-lhe o significado. É que a vida íntima, atrofiada
no passado, agora transborda, contaminando a realidade natural. “Todos os dias
acordo com alegria e pena. / Antigamente acordava sem sensação nenhuma;
acordava”, ele escreve. Seu romantismo do “ser selvagem” abre espaço para outro
aspecto: o do intimismo romântico. Sim, pois não é somente o cartesianismo que
aprisiona o indivíduo na consciência, também o movimento romântico descobre a
intimidade. Caeiro cede, portanto, ao dilema da civilização moderna: o dualismo
entre a alma e a matéria, o abismo entre a consciência e a realidade exterior.
O rompimento é lamentado pelo heterônimo: “Talvez quem vê bem não sirva para
sentir”. Um destino, sem dúvida, peculiar. Fernando Pessoa constrói o estilo
ideal de vida desejado para si e para os reflexos ficcionados de sua
personalidade, e, ao término, frustra-o como todas as utopias.
Supõe-se, então, que não exista qualquer solução
verdadeira para a problemática do ser e do não ser. Chegara a tal conclusão o
criador do universo de heterônimos? Teria compreendido que a única saída é
mesmo aceitar o dilema com resignação, conformar-se com o pouco ou nada que se pode
ser, e não esperar qualquer acréscimo do idealismo ou das divindades? O misto
de estoicismo e epicurismo que compõe a personalidade de Ricardo Reis parece
induzir a esse caminho. O outro discípulo de Caeiro não compartilha o
histrionismo de Álvaro de Campos, não escreve raivosamente, ao contrário, é
portador de um estilo medido e sofisticado. Sua tranquilidade não advém da
esperança sobrenatural, nem tampouco da confiança humana. Ser calmamente, para
Ricardo Reis, significa simplesmente admitir a insignificância:
Melhor
destino que o de conhecer-se
Não
frui quem mente frui. Antes, sabendo,
Ser
nada, que ignorando:
Nada
dentro de nada.
A crença na inevitabilidade do destino está no centro
do pensamento de Ricardo Reis. Sendo um helenista, abraça o conceito tão caro à
cultura grega. O conhecido mito do eterno retorno está na origem dessa visão
negativa sobre o destino da humanidade: independente da atitude do homem, o
cosmos encontra-se fadado a destruições e ressurgimentos contínuos. Preso no
interior desse círculo, o indivíduo jamais conseguirá ser dono de si. A tríade
clássica, Sócrates, Platão e Aristóteles representa, de certo modo, a ruptura e
o abandono do mito do eterno retorno no pensamento antigo. Quando o Estagirita
estabelece a “causa final”, oferece ao ser humano a esperança da finalidade
definitiva. O otimismo desses três é o ápice da filosofia grega! Que foi feito
do velho mito? Não desapareceu absolutamente. Sua influência exerceu-se, ainda,
entre os epicuristas e os estóicos. Os primeiros mergulhando na satisfação dos
prazeres morais e intelectuais, pois a distância dos deuses impossibilitava o
acesso ao sentido sobrenatural. Se o homem está aprisionado na realidade
material, se a morte é realmente inevitável, e tudo para além bastante
duvidoso, pouco resta a nós senão aproveitar a vida. Quanto ao estoicismo, sua
resignação aos limites da existência nasce justamente dessa fatalidade do
destino humano. É preciso suportar as desgraças que se abatem sobre nós,
“estoicamente”, porque seria inútil confrontar o destino.
As
rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas
vólucres amo, Lídia, rosas,
Que
em o dia em que nascem,
Em
esse dia morrem.
A
luz para elas é eterna, porque
Nascem
nascido já o sol, e acabam
Antes
que Apolo deixe
O
seu curso visível.
Assim
façamos nossa vida um dia,
Inscientes,
Lídia, voluntariamente,
Que
há noites antes e após
O
pouco que duramos.
Perecer é o termo inescapável para as rosas, bem como
para o bardo e sua musa. Viver é um dia, do nascer ao pôr-do-sol, e não há nada
que se possa fazer. Rebelar-se? Tolice. O verdadeiro prêmio por conhecer esse
fato é não ser mais necessário inquietar-se: o que tiver que ser será. O
destino precisa cumprir-se, inevitavelmente. Então que se amem as rosas de
Adônis, que se gozem os prazeres da Natureza à espera do momento decisivo. Aí
está, em Ricardo Reis, o conformismo estóico unido ao hedonismo de Epicuro.
Como seu discurso responde a problemática do ser, tão
presente na obra pessoana? Certamente não é desejando “ser outro”, como Álvaro
de Campos, desiludindo-se como Sá-Carneiro. O mestre Caeiro ensinou a Ricardo
Reis a naturalidade, e este a interpretou afastando-se do paganismo antimetafísico
do primeiro, forjando a passividade daquele que se reconhece do modo que “é”,
independente da vontade dos deuses, alheio às expectativas, desprovido das
idealizações. Ser é ser, e pronto! Compreendendo as limitações, adequando-se às
medidas do que lhe é natural, sem aguardar nada além disso, nem tolerar menos
também.
Para
ser grande, sê inteiro: nada
Teu
exagera ou exclui.
Sê
todo em cada coisa. Põe quanto és
No
mínimo que fazes.
Assim
em cada lago a lua toda
Brilha,
porque alta vive.
Seria a resposta final de Fernando Pessoa, a conclusão
definitiva sobre o dilema do ser? Não ouso afirmar. O quebra-cabeças do genial
poeta lusitano furta-se a deduções inquestionáveis. Também não me parece
correto que o leitor ou o crítico se proponha a identificar, na obra do poeta,
certa objetividade que talvez não fosse intenção do autor. Pode-se imaginar,
por exemplo, que os heterônimos jamais representassem a tentativa de
compreender o dualismo do ser, mas sim a forma de realização de sua
personalidade multifacetada. Se Mário de Sá-Carneiro sentiu-se frustrado diante
da impossibilidade de “ser outro” na realidade, Fernando Pessoa aplacou a
angústia sendo muitos na literatura. O que faltou ao primeiro? Por que se
suicidou? Quem sabe o senso de humor presente em Pessoa! Afinal de contas,
aquele que escreveu Adiamento e Poema em Linha Reta, não cogitaria terminar a
própria existência ingerindo frascos de estricnina.
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