" " NOVA CASTÁLIA: A LITERATURA POR COMPANHEIRA

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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A LITERATURA POR COMPANHEIRA





Os monges escolhem livremente a solidão: é nesse estado que se encontram com Deus. Os estrangeiros muito frequentemente também conhecem a solidão. Ser um estranho em terra distante, cercado por pessoas de língua e cultura diferentes, tentando decifrar os signos da nova realidade, sentindo a ausência de amigos e familiares, tudo isso tem correspondência com a solidão. Os amantes abandonados experimentam a solidão em seu aspecto um tanto obscuro. Pode certamente não ser a condição mais ambicionada, contudo, não devemos esquecer que muitas obras artísticas nasceram inspiradas pela figura dos amantes frustrados. Há outra espécie de indivíduo cujo status encontra-se ligado à imagem do solitário: trata-se do escritor. Sozinho no estúdio, cercado de livros e silêncio, escrevendo durante horas a fio, o escritor constitui o protótipo do ser humano que, utilizando-se de um elemento originalmente adverso – a solidão – consegue transformar a adversidade em criação artística. Sempre que bem-sucedido, o autor de livros estabelece um diálogo frutuoso com os leitores, e é curioso que esse colóquio nasça e se desenvolva exatamente no terreno da solidão, como se ela se metamorfoseasse no seu contrário, como se fosse necessário construir um silêncio absoluto a fim de atingir a essência da natureza humana e então transmiti-la. Da mesma forma, o leitor necessita buscar a solidão se o intuito for compreender a mensagem transmitida, e isolado, tendo somente a companhia do livro, torna-se testemunha silente daquele desnudar-se audacioso da alma que empreende o escritor nas páginas. No espaço da solidão, dois espíritos distantes entendem-se discretamente.
Gosto da imagem tradicional do escritor caminhando à beira-mar, em uma tarde fria de outono, o oceano cinza e encapelado, o ruído da ventania, o homem como uma sombra vagando com aquela sensação de que acolhido em seus pensamentos está seguro. Talvez esses momentos sejam mesmo imprescindíveis, sem essa reclusão voluntária as obras provavelmente ficariam sufocadas, como a semente que encontra terra árida e não consegue desenvolver-se. A solidão é fecundante muitas vezes. Decerto ele procura essa situação tentando calar a balbúrdia exterior, afastar os intrusos do seu território literário, dar espaço ao nascimento dos textos, permitindo que amadureçam antes na intimidade do coração. Os leitores também buscam esse retiro, o barulho sincopado das ondas, o zumbido discreto da brisa, e ali mergulham confortavelmente na leitura. Precisam fazer o exercício do distanciamento porque essa voz distante é sutil, e exige toda a atenção, sim, ela exige fidelidade, deseja que o indivíduo se afine ao ritmo de alguma coisa que agora se encontra longe no tempo e no espaço, embora se conserve viva nas páginas de um livro. Sempre que o encontro acontece a contento, eis a compreensão sucedida como se os limites naturais da existência se rompessem, tornando possível um tipo de comunicação improvável.
Quando tomei a literatura por companheira, descobri a consistência dessa solidão. Havia um território no qual me embrenhava e decifrava segredos, um hemisfério que a mim se franqueava, conquanto estabelecesse limites à entrada dos outros. Tornei-me frequentador constante de bibliotecas, e farejei cada estante de livros à procura daquelas obras que não somente me acrescentassem cultura, mas que sobretudo me transformassem totalmente. O hábito da leitura não era apenas distração, existia nele um caráter existencial, não era só me distinguir dos demais porque conhecia os clássicos, era, na realidade, a busca do conhecimento de mim mesmo refletido nos escritos de seres humanos a quem eu não conhecera pessoalmente, autores de culturas e idiomas diversos que, de certo modo, traduziam parte daquilo que sou. Em Fiódor Dostoievski padeci a angústia do autor confinado em um ambiente hostil, sendo obrigado a conviver com a brutalidade, e protegendo a todo custo o seu talento. Em Franz Kafka eu reconheci a angústia do indivíduo massacrado pela burocracia do estado e oprimido por um ofício carente de significado. Nos versos de Fernando Pessoa compreendi minha natureza multifacetada, os eus diferentes dialogando comigo, e o sufoco de tentar expressá-los como personagens literárias. E no surrealismo de Hermann Hesse deparei-me com um espírito tão semelhante que ambos buscávamos o autoconhecimento transcendendo a realidade meramente comezinha, e alcançando ambientes livres de convenções e espiritualmente elevados, onde a alma conseguia alçar voos libertadores. Todas essas vivências iam sendo acumuladas, e embora no comércio das vulgaridades não valessem muito, considerei que fossem uma espécie de tesouro que deveria manter guardado com todo cuidado.
Era natural que eu ansiasse compartilhar essa herança, oferecer às demais pessoas um bocado dessas experiências adquiridas, no entanto, fui compreendendo algo perturbador: na mesma medida em que a vivência literária me tomava e também me distinguia, criava igualmente uma dificuldade de comunicação. Havia demasiada densidade em tudo aquilo, demasiada consistência, e a realidade terrível era que os outros preferiam entreter-se com assuntos mais superficiais. Foi exatamente assim que admiti o fato de que, embora fosse um tipo de diálogo, a literatura tinha alguma coisa de seletivo, construindo amiúde uma torre de marfim onde se refugiavam todos os que estavam encantados. Sim, eis que me havia transformado em um homem recluso naquele território com raríssimos interlocutores, um ser humano sapiente de uma linguagem fundamental conhecida por uma estirpe única. Isso naturalmente favorecia os diálogos interiores, contudo, eu precisava descobrir uma maneira de dar vazão a tudo que se acumulava por dentro, eu precisava sair daquele sufoco do isolamento excessivo.
Tendo utilizado a literatura como entrada, observei que deveria utilizá-la então como via de saída. Se o colóquio não conseguisse atingir multidões, ao menos atingiria aqueles que estavam dispostos a edificar uma ponte de comunicação estimulante através dos textos. Fui assim traduzindo o que sou em escritos que ficavam como registro das experiências, e as testemunhas que encontrasse no caminho seriam os interlocutores que, conquanto não pudessem ser tocados fisicamente falando, decerto seriam tocados intimamente. Como eu fora a testemunha de Dostoievski, Pessoa, Kafka e Hesse, agora necessitaria buscar aqueles que me testemunhassem também, e isso consistia no fechar de um círculo, o cumprimento da missão de leitor e escritor. Isso era o verdadeiro significado daqueles anos de silêncio e solidão mergulhado na leitura dos clássicos.


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