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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

AS SUTILEZAS DA JUSTIÇA



No romance O Homem Sem Qualidades, do escritor alemão Robert Musil, existe um debate estimulante acerca da circunstância de um assassinato cometido por Moosbrugger. Digo que seja estimulante porque o protagonista do enredo – Ulrich – intercede em nome do acusado que, segundo ele, não teria consciência absoluta da gravidade do crime que, objetivamente, escandalizou a sociedade: Moosbrugger matara uma jovem prostituta com dezenas de golpes desferidos com tesoura. Musil desloca a narrativa, em dado momento, apresentando a circunstância a partir da perspectiva do assassino, e então testemunhamos um indivíduo de parcos recursos intelectuais – conquanto não desprovido de forças corporais – que confessa o ato afirmando haver agido de maneira brutal não porque estivesse premeditado, mas sim por acreditar que a prostituta representasse um risco. Portanto, fica assim estabelecido um contraste entre o rigor da justiça que condena Moosbrugger e a visão próxima do criminoso que, na opinião de Ulrich, não parece ser exatamente um mau sujeito, nem tampouco perigoso. 

As nuances da justiça nos colocam, às vezes, em situações semelhantes a essa apresentada por Robert Musil em seu romance, e decidir exatamente o grau de consciência do criminoso é algo que excede muito frequentemente a capacidade humana. 

 O filósofo Josef Pieper escreve: 

 “Dar valor ao outro por ser outro – isso é ser justo (...) A justiça diz: há um outro, que não é como eu, e que tem os seus direitos. Assim, o justo mostra-se justo porque confirma o outro naquilo em que ele é diferente, e procura dar-lhe o que lhe pertence.” 

 Pieper define o justo como aquele que dá valor ao outro, e isto significa afirmar que a justiça é uma virtude que está vinculada à relação. Ou seja, na ausência do outro, a justiça não tem cabimento.  

Dentro de uma perspectiva teológica, o termo justo encontra o seu equivalente na palavra santo. Um santo é necessariamente um justo. Pode-se entender, dentro dessa perspectiva, que o justo se encontra perfeitamente adequado (ajustado) às normas divinas, vive segundo as leis de Deus, e nele não existe dissensão. Ora, o mandamento sublime de Deus consiste em Amar a Deus acima de todas as coisas e aos outros como a si mesmo. Portanto, só pode ser justo aquele que confirma o amor na sua atitude, tanto vertical quanto horizontalmente, o que significa dizer também que ama a Deus assim como ama os homens. E não somente como está disposto a amar os seus amigos, mas igualmente como ama os seus inimigos. Isso caracteriza o santo ou o justo: a vivência do amor na relação.   

Porém, cumprir o mandamento de amar o próximo, inclusive o criminoso, não significa corroborar o crime cometido. Nesse caso a justiça ficaria comprometida porque o criminoso é, em si mesmo, um indivíduo injusto por não ter amado suficientemente o outro. Observar a situação desde a sua perspectiva também não representa justificá-lo socialmente em decorrência de alguma circunstância desfavorecida, pois mais desfavorecido foi aquela vítima da injustiça do crime. Trata-se sobretudo, então, de não pagar a injustiça com o preço idêntico da injustiça, não violentar o violento, oferecendo, em contrapartida, a bondade ao invés da maldade, a compreensão ao invés da incompreensão, o amor ao invés do ódio e, consequentemente, a justiça no lugar da injustiça.  

Para analisar a existência daqueles criminosos brasileiros que recentemente protagonizaram chacinas em diversas penitenciárias com a mesma perspectiva suscitada por Robert Musil no que tange ao caso Moosbrugger, ou seja, de modo imparcial e objetivo, urge admitir que a justiça não é uma forma de vingança e que ela não começa no ato de punição, mas antes começa na alma de quem analisa a questão externamente. Moosbrugger não é inocente do crime cometido, entretanto, isso não significa declarar a inexistência de sua versão nessa circunstância. De maneira semelhante, não são inocentes os criminosos brasileiros, conquanto essa afirmação não lhes retire o direito de ter uma perspectiva pessoal dos acontecimentos reais.  

Sem dúvida, existe uma tendência ideológica que, a pretexto de encarar as situações sob o ponto de vista do bandido, tenciona justificá-lo ou desculpá-lo exageradamente, inclusive chegando ao cúmulo de retirar dele a responsabilidade, atribuindo-a ao status quo social. Com isto, o criminoso torna-se vítima, e a verdadeira vítima é negligenciada. Fique suficientemente claro que não estou escolhendo essa hermenêutica, não pretendo argumentar segundo preceitos de caráter revolucionário, e acredito que todo crime deve ser punido e toda vítima verdadeira deve ser protegida. Porém, continua havendo, a despeito das paixões ideológicas, uma perspectiva particular que, se não necessita ter primazia na análise, é importante, no entanto, que seja levada em consideração. O escritor alemão Robert Musil leva em consideração a história de Moosbrugger e quem deseje impor a justiça dentro das penitenciárias brasileiras terá que seguir o mesmo preceito do romancista.  

Resta ainda uma questão delicada nessa análise: dentro de uma sociedade laicizada como é a nossa, em que o âmbito religioso mantém-se excluído, como a justiça terá essa visão imparcial e essencialmente amorosa quando este conceito se origina no contexto teológico? Ater-se unicamente à frieza do código penal significa afastar o senso de caridade, e sem isto decerto com mais probabilidade será implantado um sistema antes injusto do que justo. Meditar a respeito desse problema deveria estar no centro da discussão. 


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