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quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O MISTÉRIO DE MÁRAI



Saio da leitura de Sándor Márai como quem acaba de sair de um processo de purificação. O romance do escritor húngaro se chama De Verdade, e é impossível para o leitor percorrê-lo sem se perceber confrontado por verdades que o autor vai expondo através de uma linguagem precisa. São raríssimos os autores que conseguem deixar tal impressão: aquilo que você um dia pensou ou sentiu, redigido com as palavras mais adequadas. Trechos como aquele que transcrevo a seguir, por exemplo, suspendem a nossa respiração, obrigando o leitor a confessar, numa mistura de encanto e perplexidade: É verdade!
“Um dia despertei, sentei na cama e sorri. Nada me doía. E de súbito compreendi que não existe mulher de verdade. Nem na terra nem no céu. Não existe em lugar algum aquela. Não existe pessoa completa, e não existe aquela, a única, a maravilhosa, plenamente satisfatória, excepcional. Existem apenas pessoas, e em cada pessoa existe também tudo, dejeto e luz, tudo…”
Márai nasceu na cidade de Kassa e, embora atualmente a região seja parte do território da Eslováquia, então se contava como parte da Hungria. Foi em húngaro que escreveu a vida inteira, coisa que, de certa maneira, contribuiu para o seu ostracismo literário. Um liberal acima de tudo, Márai sempre se opôs a qualquer forma de autoritarismo, tendo sido um dos primeiros intelectuais na Europa a se erguer contra o nazismo. Em seus livros é também comum encontrarmos uma visão bastante lúcida a respeito do socialismo. Censuradas durante o período do regime comunista, apenas depois de muito tempo as obras do escritor puderam ser publicadas em seu país. É interessante observar, no entanto, que mesmo sendo um crítico dessa ideologia, foi igualmente um crítico do estilo de vida burguês e das convenções e preconceitos que separam as classes sociais.
De Verdade foi escrito durante um período de quarenta anos, e é narrado por quatro personagens diferentes. A trama se desenrola em torno da relação amorosa entre Péter e Judit Aldozó, e é possível afirmar que Márai foi feliz se sua intenção era mostrar como uma situação determinada pode ser encarada de modo diverso por consciências diversas. O estilo do romance é claro e inequívoco, fazendo com que o leitor deslize pelas páginas, degustando a sofisticação da prosa e, ao mesmo tempo, penetrando fundo no íntimo das personagens. Nessas páginas encontram-se presentes todas as temáticas essenciais da literatura de Márai: o conflito cultural entre a burguesia e os trabalhadores, retratado no relacionamento entre Péter, o filho de um abastado industrial, e Judit, a empregada de sua família; a complexidade do diálogo nas relações humanas, o que se revela claramente quando Ilonka, a primeira esposa de Péter, toma a palavra e narra a frustração de seu matrimônio; e o drama da decadência intelectual que sofre a Europa efervescente do período entre a primeira e a segunda guerra, drama que encontra sua personificação em Lázár, o escritor e amigo de Péter, com quem Judit Aldozó acaba mantendo uma relação excêntrica.
A descrição que Ilonka oferece de Lázár ajuda-nos a compreender a complexa personalidade do escritor:
“Até então eu via os escritores como padres seculares. E em seus livros esse homem se dirigia ao mundo com tanta seriedade!… Eu não compreendia todos os seus escritos. Era como se ele não me desse a honra, a mim, ou ao leitor, de contar tudo… Mas sobre isso escreviam e falavam bastante os críticos e os leitores. Como acontece com todas as pessoas famosas, o escritor também era odiado por muitos. Ele nunca falava de seus livros, nunca falava de literatura. Queria conhecer tudo: um dia nos visitou de noite, e eu tive de lhe explicar como se devia preparar coelho marinado… Já ouviu coisa parecida?… Sim, coelho marinado. Tive de lhe contar tudo o que sabia sobre o coelho marinado, ele mandou chamar inclusive a cozinheira. Depois falou sobre girafas, de uma maneira muito interessante. Falava sobre tudo, sabia demais; só não falava nunca de literatura”.
Sem dúvida, por trás das relações amorosas que unem Péter, Ilonka e Judit Aldozó, pode-se perceber claramente a sombra de Lázár, pairando como uma espécie de gênio controlador, influenciando as decisões das personagens, sendo o verdadeiro catalisador daquelas almas. Seu comprometimento com a literatura nos revela a peculiaridade de quem veio ao mundo destinado à paixão artística, obcecando-se fervorosamente com as palavras, ou seria melhor dizer, pela expressão mais justa das palavras. Em desespero, procura salvar, a partir de seu estúdio, aquilo que ainda se preservou da alta cultura europeia; desnorteado, é verdade, com tantas transformações sociais, com o desprezo que as ideologias que então ascendem ao poder demonstram por aquilo tudo que a humanidade construiu durante séculos. É impossível passar por essa leitura sem ter a nítida impressão de que o escritor é a figura central da trama, ainda que Márai não o tenha colocado como um dos narradores de seu romance. Lázár é, indubitavelmente, a personagem que melhor retrata a angústia de um período histórico marcado pela ruptura. Assim como o protagonista de Hermann Hesse em O Lobo da Estepe, Lázár compreende-se um homem desprovido de semelhantes no mundo que irrompe, um artista que não tem mais lugar na sociedade porque a sociedade não faz questão de ouvi-lo.
Sándor Márai estaria presente em Lázár? É compreensível que o leitor fique tentado a relacioná-los. Afinal, Márai padeceu a censura em seu próprio país, tendo caído na obscuridade após a segunda guerra mundial. Seria perfeitamente natural encontrar algumas desilusões do autor refletidas na angústia de sua personagem, e é mesmo um mistério que um indivíduo com a profundidade humana de Sándor Márai tenha tido o destino que lhe coube. É difícil de acreditar que aquele mesmo homem que escreveu as seguintes palavras:
“Se eu tivesse um ofício que me propiciasse falar aos homens… sabe, se fosse padre, artista ou escritor… Eu imploraria a eles… eu os instigaria para que se convertessem à felicidade. Que esquecessem a solidão, que a dissolvessem. Talvez não seja só um devaneio. Não se trata de uma questão social. Trata-se de outra educação, de um despertar”.
Que esse mesmo acabasse colocando uma bala na cabeça em 1989. O que teria provocado essa solução extrema? Seu aparente fracasso literário? As terríveis recordações da guerra e do regime comunista? As consequências de uma doença mental? É realmente difícil sabermos… O que podemos perceber, com toda a clareza, é que suas obras vêm sendo redescobertas desde seu suicídio em San Diego, no Estados Unidos. Não apenas na Hungria, mas em diversos países do mundo, os livros de Sándor Márai ganham novas edições, reunindo a seu redor um grupo de leitores fiéis e apaixonados pela escrita instigante deste autor.

Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).



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