Hoje
a interpretação dos sonhos encontra-se tão arraigada na cultura contemporânea
como um elemento pertencente ao desenvolvimento da psicanálise que seria mesmo
interessante evocar o fato de que, além das características científicas do
método, existem também elementos religiosos. Como médico psiquiatra, Sigmund
Freud agia dentro de perspectivas epistemológicas, e ainda que críticos tenham
questionado o valor científico da psicanálise, sem dúvida Freud seguiu
parâmetros bastante rigorosos. Conquanto atualmente o fato de psicanalistas
escrutarem os sonhos dos analisados no intuito de tentar compreender o
inconsciente em busca da causa relativa aos problemas mentais e
consequentemente da cura necessária pareça uma circunstância corriqueira, ao
analisar essas manifestações oníricas, Freud enveredava por caminhos obscuros.
Há tempos os seres humanos lidam com tentativas de entender os mecanismos e os significados
dos sonhos, e não raramente essas tentativas expressam-se através de oráculos e
outras artes divinatórias. Mesmo as mais relevantes tradições religiosas não
escaparam do fascínio exercido pelos sonhos. Por exemplo, é possível encontrar
na Bíblia menções a sonhos simbólicos que preconizavam acontecimentos e
aconselhamentos que favoreciam a solução diante de situações consideradas muito
complexas.
Para
além das referências religiosas e da teoria psicanalítica acerca do tema,
existe o fato da experiência em si mesma. O sonho ocorre na existência dos
indivíduos como uma elaboração inconsciente em que se mesclam certa narrativa
parcialmente razoável e inúmeros elementos desconexos que muito frequentemente
desafiam a compreensão daquele que se dedica a interpretá-lo. Por vezes,
relatamos ou testemunhamos relatos de sonhos considerados absurdos. Situações
confusas como se encontrar em um determinado ambiente, e no instante seguinte
perceber-se subitamente em outro ambiente diverso sem que tenha havido
deslocamento, ou então circunstâncias em que certas pessoas se transformam em
outra de aparência diferente, ou ainda mesmo se metamorfoseiam em criaturas
animalescas, tudo isso acontece no decorrer do fenômeno onírico sem que
subsista nele próprio qualquer justificativa. De fato, a participação do
absurdo na estrutura dos sonhos dificulta bastante sua decodificação, no
entanto, devemos também admitir que essa característica talvez tenha um
significado capaz de nos auxiliar no entendimento do mecanismo interno dos
sonhos.
De
onde provém essa característica do absurdo presente no sonho? Por que o fenômeno
onírico não segue o padrão lógico e razoável do discurso consciente? Para a
psicanálise, trata-se de uma questão fundamental. Para abordá-la, é necessário
compreender que a mente humana costuma manter um estado satisfatório de
consciência quando em estado de vigília, mas assim que adormece, essa
consciência decai substancialmente, fazendo com que percamos o contato com a
realidade desperta. Passamos a viver então experiências não verdadeiras em que
recordamos coisas relacionadas à nossa existência ou criamos fantasiosamente
situações que se sucedem geralmente sem padrões fixos, e que podem
interromper-se de súbito sem que isso represente qualquer perda significativa
para o indivíduo. Pode-se sonhar com um acidente – aéreo, automobilístico ou de
qualquer outra espécie – sem que existam consequências físicas ao despertar. No
sonho, a diminuição do potencial consciente desfavorece a atuação da lógica,
das situações racionalmente concatenadas, suscitando o fator do absurdo como
elemento constitutivo do fenômeno onírico. De certo modo, podemos afirmar que a
razão ou a lógica decorrente desta desenvolve-se mais frequentemente em um
movimento linear, baseadas no estado de consciência, no entanto, quando
entorpecidas pelo sono, surgem lacunas nesse movimento linear, situação essa
que favorece o acontecimento de saltos na narrativa dos sonhos, causando
consequentemente a impressão do absurdo.
A
tese freudiana de que no sonho manifestam-se desejos reprimidos no inconsciente
auxilia na compreensão desse elemento absurdo contido na estrutura onírica. De
fato, a repressão dos desejos consiste justamente em retirar do eu consciente
aquilo que dá a impressão de ter pouca conveniência – quase sempre sob a
influência repressora do superego – e enterrar tudo no inconsciente. Quando o
que foi reprimido ressurge no sonho, na maioria das vezes mescla-se a outros
elementos – fatos relativos ao cotidiano, recordações do passado, cenas
marcantes de filmes ou da literatura, etc. –, tornando mais complexa a
interpretação. Se o analista tentasse decifrar o sonho como um todo, ou seja,
como uma narrativa linear, decerto teria imensas dificuldades. Por isso, é
necessário separar as diversas partes do sonho, analisando cada qual
particularmente, assim aplicando aos símbolos ali existentes alguma forma de
explicação cabível.
Também
é interessante observar que a simbologia e seus significados têm duas vias
comuns de interpretação: a primeira consiste em atribuir aos sonhos de todos os
indivíduos sentidos de teor universal. Por exemplo, a visão de uma serpente
deve ser entendida como representação do falo, a visão de animais selvagens
como a força dos instintos, etc. Se a mesma justificativa pode ser utilizada
com todos os indivíduos, isso demonstra que existem símbolos culturalmente
válidos para todas as pessoas – naturalmente, seria interessante estudar essa
questão em particular sob a perspectiva dos arquétipos propostos por Carl G.
Jung, contudo, isso exigiria um ensaio específico. A segunda via de
interpretação leva em consideração a vida peculiar do indivíduo analisado,
interpretando aspectos dos sonhos não como manifestação de símbolos universais,
e sim como elaborações vinculadas às experiências pessoais do sujeito. Caso o
indivíduo tenha sido atacado por um cão feroz durante a infância, talvez essa
situação tenha ocasionado receios que se expressam constantemente em sonhos nos
quais se revive a circunstância desagradável. Neste caso, cabe ao psicanalista
descobrir a melhor via de interpretação no intuito de oferecer ajuda ao
analisado.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).
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