O fracionamento da personalidade em duas
ou mais identidades distintas, situação que caracteriza o Transtorno
Dissociativo de Personalidade (TDP), tem sido estudado por especialistas que se
dedicam a investigar os fenômenos relativos à psique humana – psiquiatras,
psicólogos e psicanalistas – no intuito de compreender as origens do problema,
oferecendo consequentemente um tratamento psicotrópico quando necessário, muito
frequentemente acompanhado também de terapia. Não seria incomum que outras
áreas do conhecimento tentassem entender tal questão, oferecendo contribuições
relevantes ao debate. Isso sucede quando filósofos se dedicam à análise dos
casos característicos, mas igualmente quando artistas debruçam-se sobre esse
transtorno, elaborando obras que refletem a estrutura psíquica de indivíduos
portadores dessa enfermidade. Por isso, encontramos exemplares como o
personagem duplicado do romance O Duplo, escrito por Fiódor Dostoievski, e o
homenzinho dúbio e traiçoeiro que às vezes se manifesta como Smeagol – embora
em outras ocasiões se transforme em Gollum – na obra O Senhor dos Anéis, de J.
R. R. Tolkien. Como o tema é estimulante, sem dúvida, não me furto a tentar
decifrá-lo, tencionando talvez ensaiar alguma resposta no intuito de explicar
as origens sombrias desse transtorno.
Conservar unida a estrutura da
personalidade significa manter um grau equilibrado de consciência. Todo aquele
que é consciente de si mesmo em um estágio considerado dentro da normalidade ou
até mesmo em um padrão elevado dificilmente sofre a dissociação de
personalidade. Tal consciência resume-se em conhecer-se bem, e não somente
isso, mas conhecendo-se, também se reconhecer naquilo que é conhecido, ou seja,
existe uma aprovação intelectual do que se é, chegando-se ao ponto de se
desenvolver uma relação afetiva consigo mesmo, relação de amor-próprio. Se o
indivíduo convive em harmonia com suas características pessoais, se não rejeita
seu modo particular de ser, o mais provável é que seu estado psicológico
funde-se sobre essa unidade aludida. Nesta situação, um quadro de transtorno
dissociativo de personalidade provavelmente não se desenvolverá.
Recordando o personagem Smeagol, é
interessante mencionar que sua natureza sinistra e bifurcada manifesta-se
parcialmente submisso e bondoso, e em sua versão dupla como alguém maldoso e
dominador. Seu perfil representa um diagnóstico de transtorno dissociativo de
personalidade, ocasionalmente também conhecido como dupla personalidade. Cabe
observar que Smeagol tem uma história pessoal, e essa história justifica o
surgimento de sua personalidade dupla. Tendo encontrado o anel de Sauron
casualmente, Smeagol assassina seu primo Déagol no intuito de possuir sozinho o
achado. Trata-se de um anel poderoso, capaz de corromper quem o possui, e isso
acontece com o personagem em questão. Smeagol esconde o corpo da vítima, e o
crime permanece desconhecido. Pode-se interpretar aqui o homicídio como algo
capaz de atormentá-lo, não fosse o expediente de ocultar o fato – isto
naturalmente nos remete às verdades traumáticas ou indigestas que costumam ser enterradas
no inconsciente, a fim de que o eu consciente não tenha que encarar o problema.
No entanto, camuflar o crime ainda não é o bastante: o indivíduo necessita
constituir uma personalidade alternativa a fim de se desvestir totalmente da
natureza criminosa. A nova personalidade – o duplo – age com relativa
independência, e sobretudo não se sente na obrigação de dar satisfação dos
crimes, pecados, equívocos, ou defeitos de caráter da personalidade original.
De tudo que foi dito, conclui-se que o crime estabelece uma espécie de crise,
algo que deveria ser expiado no intuito de restabelecer a unidade. Como isso
não acontece, o ato criminoso se mantém como um elemento inconveniente, devendo
ser evitado a todo custo.
Dentro do processo psicanalítico, cabe
desenvolver uma investigação tentando compreender o relacionamento do analisado
com sua própria autoimagem. Há questões profundas e mal resolvidas? Há verdades
escamoteadas no passado, lembranças a serem evitadas? Se há, deve-se trabalhar
no sentido de trazer â tona o que foi escondido com a intenção de produzir o
confronto com essa realidade. Quando a situação é dolorosa – e muito
costumeiramente acontece de ser –, urge ao psicanalista utilizar-se de uma boa
dose de humanidade no intento de auxiliar o analisado no processo sem que este
sofra demasiadamente ou sucumba no decorrer do tratamento. Mesmo que a
psicanálise possa conduzir o indivíduo a enfrentar verdades sofridas, isso não
significa que a análise seja vivenciada como uma espécie de tortura ou um
embate destruidor. É importante que o psicanalista direcione a coisa de maneira
a que surjam as descobertas com bastante naturalidade, e sobretudo que não
ocorram novos traumas. Por isso, o tratamento psicanalítico é caracterizado por
um período longo e constante: desse modo, o que se conserva oculto brota sem
tantos constrangimentos.
Provavelmente ainda se estudará e se escreverá bastante acerca do
Transtorno Dissociativo de Personalidade. Este breve ensaio pretende somente
aventar algumas hipóteses possíveis sobre suas causas e a abordagem terapêutica
usada a fim de solucionar essa questão. Nunca se deve esquecer que os mistérios
da psique humana continuam desafiando aqueles que se dedicam a entendê-la, e
que a psicanálise, mais especificamente, permanece um campo estimulante de
investigação.
Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).
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